O sujeito na contemporaneidade, de Joel Birman lido em conjunto com Bartleby, o escrivão e Sociedade do cansaço

O sujeito na contemporaneidade - Joel Birman

Assumido como ponto de partida que o psiquismo humano está exposto a estímulos exteriores e precisa lidar com eles de algum modo, sob pena de prejuízo ao seu regular funcionamento, dentro da tradição psicanalítica é possível identificar como “trauma" aquele estímulo externo que se abate sobre o indivíduo com uma força tal que o aparelho psíquico não é capaz de elaborar a experiência em palavras e símbolos, de modo que o excesso assim constituído pelo estímulo passa a ser de difícil vazão, encontrando no corpo e na hiperatividade lugares privilegiados de descarga não verbal. Há, portanto, uma estreita relação entre linguagem e trauma; na contemporaneidade, o trauma ganha uma disseminação inaudita na medida em que a linguagem está em crise e as experiências são cada vez menos elaboradas em termos simbólicos. Muito embora os problemas psíquicos correntes na passagem do século XIX para o século XX não apresentassem exatamente a configuração atual, é certo que já ali se insinuava algo do que hoje existe, sendo disso exemplo a novela de 1853 Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville (tradução de 2015): é como se hoje em dia houvesse uma proliferação de pessoas assemelhadas ao personagem homônimo. Este ensaio procura explorar a associação entre trauma e crise da palavra segundo o paradigma do personagem de Melville, partindo do panorama traçado por Joel Birman em O Sujeito na Contemporaneidade - Espaço, Dor e Desalento na Atualidade (2023), assim como do conceito de sociedade do desempenho ou do cansaço, pensado em contraposição à sociedade disciplinar pelo filósofo Byung-Chul Han (2017).

Na visão de Birman, duas coordenadas da experiência humana são determinantes para se compreender a fenomenologia do trauma: o tempo e o espaço. Os problemas psíquicos correntes, bem assim o mal-estar civilizacional descrito por Freud em sua época estariam inseridos num contexto em que o indivíduo geralmente dispunha de palavras e símbolos para articular sua experiência, sendo por isso viável a psicanálise e procedimentos como o da evocação dos sonhos, mediante o qual os símbolos do desejo oferecidos pela experiência onírica podiam ser encadeados num discurso e finalmente interpretados, fornecendo caminhos para a subjetivação. Nesse cenário, os estímulos externos que se abatiam sobre o psiquismo contavam com a linguagem como meio de simbolização e vazão; não se acumulavam a ponto de precisarem descer para o corpo e a ação de forma não verbal. A imediaticidade do estímulo externo que desafiava o indivíduo, a princípio um absoluto de espaço dissociado do devir no tempo, assim como a experiência onírica de base, toda ela imagens simultâneas que se apresentavam como corpo estranho ao psiquismo, na medida em que eram transformadas em linguagem passavam a ser dotadas da dimensão do tempo que é própria da narrativa, ao mesmo tempo que o indivíduo ganhava um incremento no seu processo de subjetivação, pois saía do estado de sujeição passiva frente ao estímulo e ao sonho em direção ao estado de sujeição ativa de quem se apropria de estímulo e sonho para ordená-los e narrá-los.

Nessa senda, a proliferação do trauma na contemporaneidade decorreria da crise da linguagem e da simbolização, que reduziria estímulo externo e experiência onírica à dimensão do espaço, encerrando o indivíduo num eterno presente de trauma e pesadelo. Uma vez que o estímulo externo não dispõe da linguagem para ser processado e disperso - ou acomodado -, e constituindo ele um excesso para o psiquismo, o caminho que sobra é sua consolidação não verbal, seja no corpo, seja sob a forma da hiperatividade não refletida ou das intensidades que levam ao desalento, como a depressão. De outra parte, uma vez que a experiência onírica seria ordenada pelo desejo, e considerando que o desejo implica a temporalidade em que possa transcorrer, num mundo em que o indivíduo é constantemente reduzido à dimensão do espaço, até mesmo os sonhos deixam de ser produzidos como antes e passam a ser sobrepujados pelos pesadelos, em que a imediaticidade não temporal da experiência é tão forte que não resta alternativa a não ser acordar para escapar do insuportável. Sempre segundo a visão de Birman, a crise da linguagem e da simbolização que faz preponderar o espaço sobre o tempo cria um mundo em que o sofrimento de outrora se transforma em dor incomunicável, e em que o desamparo antes existente, a apontar para o outro que podia prestar ajuda, se transforma em desalento marcado pela inviabilidade do socorro. A subjetivação resta prejudicada, uma vez que o indivíduo é permanentemente mantido na condição de sujeito passivo, incapaz que está de se antecipar aos acontecimentos, cogitar e desejar: o protagonismo da própria história não é assumido.

Sintetizado o panorama do trauma na contemporaneidade traçado por Birman, cumpre questionar quais seriam as raízes da crise da linguagem e do simbólico; nesse sentido, a conceituação das sociedades disciplinar e do desempenho elaborada por Byung-Chul Han é de grande valia. Como dito em outra oportunidade (FREITAS, 2020):

[…] Byung-Chul Han defende a tese de que o nosso tempo se diferencia do período que o precedeu em razão de um critério patológico: enquanto o tempo pretérito era caracterizado pelo dever e pela disciplina, isto é, pelo excesso de negatividade, em que o diferente deve ser eliminado como uma bactéria, o tempo atual é caracterizado pelo poder e pelo excesso de positividade, em que o indivíduo convive bem com o outro, mas não consigo mesmo, na medida em que se exige um nível de desempenho que não é capaz de satisfazer. A sociedade do passado é a sociedade disciplinar descrita por Foucault e Freud, em que, no ambiente de presídios, hospitais e fábricas, um outro exige do indivíduo o cumprimento de um dever, ou seja o desenvolvimento de determinado comportamento, sob pena de punição e a promessa de recompensa ou instância de gratificação. A sociedade atual, por outro lado, é a sociedade do desempenho; a partir de determinado ponto, a produtividade do indivíduo não aumenta em razão da exigência do dever por um outro, fazendo-se, portanto, necessário que o próprio indivíduo represente para si os papéis de senhor e escravo: a produtividade passa a decorrer da positividade do poder, confundindo-se a liberdade com o exercício do desempenho máximo.

Tendo em vista que, segundo a exposição feita até aqui, na sociedade disciplinar não haveria uma crise da linguagem e da simbolização tão disseminada quanto hoje em dia, é possível perscrutar que justamente a preponderância de instituições exteriores como presídios, hospitais e fábricas, bem como a de figuras de autoridade como a do juiz, do médico, do patrão e do pai levavam o indivíduo a sair de si mesmo e se valer do outro como matéria-prima de simbolização, com o que elaborava o estímulo externo hostil oriundo dessas instituições e autoridades, verbalizava-o, simbolizava-o e dava a ele uma vazão minimamente satisfatória. A exterioridade da figura de opressão pressupõe naturalmente um trânsito do eu para o outro, e nesse trânsito está implicado o tempo e o sujeito que se apossa dos fatos para narrá-los - também no tempo. A partir do momento em que o sujeito da opressão se confunde com o objeto oprimido, deixa de existir o trânsito em direção ao outro, perde-se a dimensão temporal ali implicada e a subjetivação é frustrada, pois o indivíduo tem dificuldade de se apossar dos fatos para narrá-los, já que, nessa narrativa, o algoz seria ele próprio: como se insurgir contra si para alcançar a liberdade se no processo o sujeito será destruído? Resta a paralisia, a unidimensionalidade do espaço, a crise da linguagem e a angústia.

Se, de acordo com a hipótese aqui sustentada, a crise da linguagem e da simbolização está imbricada com a sociedade do desempenho, emergindo daí o trauma que paralisa o sujeito e desce de forma não verbal como manifestações nos campos do corpo e da ação, a personagem Bartleby, da novela homônima de Melville, pode ser vista como uma antecipação visionária desse fenômeno atual. Na narrativa, Bartleby é um escriturário contratado por um advogado de Wall Street para realizar cópias de documentos jurídicos em geral; diferentemente dos seus companheiros de escritório, Bartleby não é dado a particularidades que possam irritar o seu chefe, concentrando-se perfeitamente na consecução do seu mister. Ele é, portanto, uma perfeita máquina de copiar, consagrada unidirecionalmente à função que justifica a sua presença naquele ambiente, sem maiores ruídos oriundos de uma humanidade multifacetada. De acordo com a terminologia de Byun-Chul Han, ele é um exemplo arrematado da sociedade do desempenho - até ao ponto do paroxismo. Acontece, porém, que a partir de determinado momento, Bartleby é instado a realizar sua tarefas com algumas variações e, diante dos apelos do patrão, ele não se insurge como se insurgiria um sujeito da sociedade disciplinar, isto é, numa discussão, rebelião ou greve pautadas por uma estrutura narrativamente engendrada; ele se limita a dizer “I would prefer not to”, fórmula traduzida para o português como “Preferiria não” ou “Preferiria não fazê-lo”. Diante de tudo o que lhe pedem Bartleby repete o seu refrão, e o desconcerto do chefe e a paralela paralisia do personagem vão escalando até Bartleby ser levado à prisão e ali morrer de fome, enclausurado em si mesmo.

A fórmula verbal utilizada por Bartleby é indício de uma crise mais geral da linguagem: é uma fórmula ambígua que não se sabe dizer se de fato constitui ou não uma recusa. Para além da ambiguidade da fórmula, é preciso notar que Bartleby não se dedica a outras expressões verbais, o que aponta para sua incapacidade de se assenhorear do seu psiquismo e dos estímulos que o provocam, ordenando-os em uma narrativa com a qual possa passar de sujeito passivo a sujeito ativo de sua história. O que acompanha a crise da linguagem de Bartleby é precisamente a paralisia, a incapacidade do desejo e do devir: Bartleby é radicalmente reduzido à dimensão espacial, perecendo como um ponto atômico numa prisão, desprovido de toda exterioridade, ainda que a mais elementar constituída pelos alimentos. Utilizando as fórmulas de Birman, Bartleby sente uma dor incomunicável que o conduz ao desalento. Há, assim, em Bartleby, um exemplo eloquente do indivíduo traumatizado da contemporaneidade e, considerando a vida pregressa do personagem - funcionário exemplar, posto que antes máquina do que humano -, a demonstração do vínculo entre sociedade do desempenho, crise da linguagem e trauma.

Percebe-se que, na contemporaneidade, o sujeito se transforma em espaço unidimensional de sua experiência de vida, seja como receptor e reservatório de estímulos externos, seja como sujeito e objeto de seus próprios imperativos de desempenho. A unidimensionalidade do espaço indica a inexistência do trânsito em direção ao outro, que não é mais simbolizado como o responsável pela opressão nem procurado como possível instância de socorro. É justamente no trânsito que existe o tempo, o passar de um estado anterior a um estado posterior. É justamente no trânsito que existe a linguagem, que se articula no tempo para ordenar o que é anterior e o que é posterior. Nesse cenário, como o personagem Bartleby, de Melville, o indivíduo é reduzido à paralisia de sua unidade, incapaz de, mediante a linguagem, tornar-se o sujeito ativo de uma história cujos lances ordena e que se dirige ao mundo externo a fim de fazer-lhe apelos. Em última instância, é a morte solitária que se insinua como desfecho provável da história individual, resultado do trauma.

Referências utilizadas

BIRMAN, Joel. O sujeito na Contemporaneidade: Espaço, Dor e Desalento na Atualidade. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023. (https://amzn.to/3SB3FEQ)*

FREITAS, Lucas Carvalho de. Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han. Blog Diário de Leitura. 26 jan. 2020. Disponível em: https://diariodeleituradolucas.blogspot.com/2020/01/sociedade-do-cansaco-de-byung-chul-han.html Acesso em 23 out. 2023.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2017. (https://amzn.to/3uNbgbk)*

MELVILLE, Herman. Bartleby, O Escrevente. Uma História de Wall Street; tradução Tomaz Tadeu In.: AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, ou da Contingência; tradução Vinícius Honesko. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. (https://amzn.to/3SQOTtU)*

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