Doroteia, de Nelson Rodrigues

 

Doroteia, de Nelson Rodrigues

As quatro peças que integram o ciclo mítico de Nelson Rodrigues têm em comum o descolamento de tempo e espaço identificáveis. Apesar de elementos reconhecíveis como integrantes de uma sociedade historicamente determinada, o que nelas predomina são o essencial e o primitivo, de tal maneira que podem receber indistintamente a roupagem de culturas distantes ou a de um minimalismo que realce seu caráter arquetípico. Doroteia, “farsa irresponsável em três atos” que remonta a 1950, encerra o ciclo mítico promovendo um descolamento radical de tempo e espaço ao abolir as fronteiras da realidade, flertar com o surrealismo e, na visão de alguns, trazer para o palco o plano do inconsciente, assim como Vestido de Noiva fizera antes dela. O feminino, tão presente nas peças do dramaturgo, aqui é apresentado de forma igualmente radical, por meio da abolição completa das personagens masculinas. Mesmo a expressividade da face humana é radicalizada na sua cristalização em máscaras. O resultado é um quadro horrendo da deformação causada pela repressão do desejo. A intenção moralizante do escritor é de difícil acesso.

Doroteia é uma prostituta que promete largar a vida de dissipação depois de perder o filho. Essa saída implica regressar ao mundo da família, constituída, no caso, por três primas viúvas que vivem juntas: D. Flávia, Carmelita e Maura. A família de Doroteia é singularmente incomum: a bisavó se casou com um homem diferente daquele que amava; em consequência dessa traição, na noite de núpcias, foi acometida pela “náusea”, um entorpecimento dos sentidos que a impedia de enxergar o marido ou qualquer outro homem, ao mesmo tempo que ia desintegrando o cônjuge enquanto presença física, de modo que ao final ficou viúva. A náusea da bisavó foi transmitida às mulheres da família, que desde sempre não conseguiam enxergar os homens e, na noite de núpcias, terminavam sem marido, às vezes conseguindo engravidar. Como herança tão singular que é, a náusea é vista pelas mulheres como um sinal de orgulho e distinção, e é maldita a que passa incólume a ela, sendo o seu fado padecer de uma insônia sem fim.

As primas que Doroteia procura são as defensoras do estigma familiar; três viúvas horrendas, cuja feiura está fixada em máscaras que são proteção e esconderijo; vestem trajes castíssimos, sempre se posicionando em formação cerrada, como compósito indistinto de três cabeças. Não enxergam os homens e sua missão de vida é zelar pela repressão de qualquer traço de desejo que surja. Por isso se escandalizam com o próprio corpo nu por debaixo das roupas; mantêm-se em vigília perpétua, insones e hieráticas, a fim de não abrir caminho a sonhos impuros; na casa não há quartos, apenas salas, pois a privacidade da alcova é passo certo de perdição. Para elas, ser feia é uma dádiva. Afora as máscaras, usam leques, que abanam freneticamente a fim de se proteger sempre que o pudor está sob ameaça. O trio consagra a existência a combater o desejo com radicalidade, e a náusea é o galardão que distingue essa vocação. 

Muito embora parente, Doroteia não foi marcada pela náusea; afinal, pôde gozar os prazeres da carne, ser prostituta, ter um filho homem. Além disso - e este é o mais imperdoável dos pecados -, é linda, sua pele é sem manchas e os cabelos, deslumbrantes. É a bela e fogosa Doroteia, portanto, quem encontrará as três primas feiíssimas e castíssimas, porém movida pelo desejo de mudar de vida e se tornar uma delas.

O ponto central da peça Doroteia está na iniciação da protagonista homônima na “seita” dos desejos reprimidos. Farsa dividida em três atos, o primeiro traz a irrupção de Doroteia, vestida de vermelho “como as profissionais do amor”, dentro do ambiente ascético e sem quartos habitado pelas primas. Há um choque de realidades, por força do qual é necessário averiguar quem Doroteia é realmente, conhecer seu passado, expor a história da família e ensinar o rito de iniciação que lhe permitirá cumprir sua promessa de se tornar uma mulher semelhante às primas. O segundo conduz Doroteia para longe do palco, incumbida de levar a cabo o rito iniciático, o que proporciona espaço para que as três primas sejam elas próprias submetidas a uma prova cabal de resistência ao desejo. No terceiro, Doroteia retorna para aguardar o desfecho incerto da mudança que teve início.

Os objetos são especialmente importantes na peça, sobretudo no segundo ato. O jarro de água florido com o qual Doroteia fazia a toalete da alcova é o símbolo da sua sexualidade aberta e, por consequência, do passado que pretende reprimir. Outro símbolo da sexualidade que irrompe são as botinas desabotoadas do noivo de Das Dores. No segundo ato, a filha de D. Flávia, Das Dores - moça de histórico espectral que transita entre o mundo dos vivos e dos mortos através desse ambiente em que a força vital é empregada no esmagamento dos desejos -, finalmente se casará com o noivo Eusébio, que está prestes a chegar trazido pela mãe, D. Assunta da Abadia. Todas estão apreensivas com a noite de núpcias que se aproxima, porque nela Das Dores será finalmente tomada pela náusea, perpetuando assim a herança familiar. D. Assunta entra primeiro em cena, em tudo se parecendo com as primas. Os diálogos que se seguem são patéticos, com as mulheres se lisonjeando mutuamente pela feiura compartilhada. Ao final das conversas, estão prontas para as núpcias, e então D. Assunta traz Eusébio à sala. Para a surpresa do leitor, Eusébio não é um ator que faz sua entrada, mas sim um objeto embrulhado num pacote. Aberto o embrulho, o objeto é revelado e sobram em cena as viúvas e a moça: o que veem é um par de botinas desabotoadas, por elas tomado como o próprio noivo.

Naquele ambiente ostensivamente controlado, em que sequer se dorme para evitar que o sonho abra a porta ao desejo, as botinas desabotoadas são a irrupção da sensualidade masculina de forma aberta e aliciante. As estruturas de controle são imediatamente abaladas. Sobretudo Carmelita e Maura perdem as rédeas sobre si mesmas, enquanto D. Flávia tenta contê-las e conter as próprias pulsões. A instabilidade também é trazida pela náusea de Das Dores: afinal, ela perpetuará ou não o estigma familiar? Nesse contexto em que o novo se inseriu, novas estratégias de controle precisam ser empregadas.

O terceiro ato se abre com o retorno de Doroteia e a expectativa em torno da sua iniciação. Ela fora enviada a um vizinho chamado Nepomuceno, a fim de ali contrair moléstias capazes de conspurcar sua beleza: ser feia era condição indispensável para viver a vida nova que almejava; contudo, as chagas ainda não desabrocharam. Paralelamente, persiste a demora da chegada da náusea sobre Das Dores. D. Flávia está sem chão; à medida que espera pelo que acontecerá tanto a Doroteia como à filha, afligindo-se dessa maneira com a herança familiar, é perseguida pelo desejo que encontrou passagem para dentro da casa: o jarro e a botina a cercam; seu mundo está em crise e o futuro é incerto.

O desejo é o grande tema da peça. O patético das personagens, o insólito dos diálogos, o absurdo das situações, todos são elementos cuja função é formar o quadro horrendo que a repressão sensual deixa impresso. De um lado, há a anatomia do desejo: força espontânea potente, perturbadora, onipresente, inescapável; por outro, a anatomia da repressão: vigilância esforçada, deformadora, ostensiva e sempre próxima à falha. Controlar o desejo é devotar religiosamente a vida a essa função, exaurir toda vitalidade em prol desse intento. O desejo é uma fatalidade trágica, logo inescapável: mesmo D. Flávia, que não se submete a ele, ao fim e ao cabo é por ele acometida na medida em que é pautada por sua repressão e deformada pela luta travada. 

Se o desejo feminino é o aspecto mais aparente do tema (em especial como expurgo do casamento de qualquer sensualidade desviante), o desejo de forma ampla é na verdade do que a peça trata afinal. A vida transformada em religião, e a religião reduzida a práticas de repressão ao desejo - esta é a descrição que pode ser atribuída à história de vários homens e mulheres de diferentes credos ao longo dos tempos. Há nos puritanismos e fundamentalismos a práxis das três viúvas.

Para um mundo em que um elemento assim tão básico da vitalidade é suprimido, nada mais natural que a imagem resultante seja um excesso espantoso. A supressão só é precariamente conseguida mediante outras supressões intensas: do sexo oposto, da privacidade, do sonho, da imaginação. Tantas supressões inevitavelmente se confundem com a tensão necessária à sua consecução. Corpos tensos produzem expressões duras e artificiais, diálogos improváveis, comportamentos histéricos. Vistas as coisas desse modo, o patético da farsa deixa de ser recurso lúdico de expressividade cênica e assume feição realista. No final das contas, Nelson Rodrigues não usa a farsa como instrumento de mediação entre a realidade e a arte; a dinâmica é outra: a arte está justamente em encontrar no real o que ele tem de farsesco. Nesse sentido, as máscaras das personagens são apenas rostos encontrados na multidão.

Entretanto, depois de concluída Doroteia, resta ao leitor habitual de Nelson Rodrigues a perplexidade: estaria o escritor, tão conhecido por seu moralismo, fazendo a apologia da liberação sexual? É essa a impressão deixada na esteira da sucessão de caricaturas da repressão sensual que são apresentadas. Todavia, um olhar mais atento leva a uma conclusão distinta. A náusea transmitida como herança é a escravização deformadora dos seres ao desejo: seja como entrega irrestrita a ele, seja como incansável controle exercido contra sua força aliciadora; é, sem dúvidas, uma maldição. Porém, é uma maldição que nasce como punição ao seguinte fato: a bisavó amava um homem, mas se casou com outro, e com esse passou a ter relações sexuais; seu desejo, então, se divorciava do amor. Como, na visão de Nelson, o desejo dissociado do amor é perverso, a perversão colhida pela bisavó foi a náusea, ao mesmo tempo punição e contenção deformadora do desejo. Houvesse amor, o desejo não precisaria ser reprimido, na medida em que, desse modo, não escravizaria ninguém, tampouco traria qualquer perturbação aos indivíduos ou à sociedade. Uma vez que amor não houve, o fado a ser carregado e transmitido são as perversões do desejo.

Muito embora seja possível extrair esse propósito moralizante das entrelinhas da peça, aqui o moralismo de Nelson Rodrigues  não é convencional: um moralismo cristão, talvez; um moralismo burguês, certamente não. A nota distintiva é o fato de que o casamento não é tido pelo escritor como suficiente para legitimar e conter o desejo; de outro modo: não se trata de simplesmente condenar o sexo fora do casamento em favor das relações maritais. A bisavó dá curso ao desejo dentro do casamento, e não obstante é punida. A punição decorre da ausência de amor, e sequer o casamento é capaz de suprir essa falta. Segundo essa lógica - e como o sugerem várias passagens de outras obras de Nelson -, os amantes que se amam e dão curso ao desejo estariam mais próximos da correção moral do que os cônjuges que se relacionam sem amor.

A conclusão pode avançar um passo além. Sendo Doroteia uma peça mítica, o que ela representa diz muito sobre estruturas básicas do ser humano e da sociedade. Desdobrando essa constatação, é possível enxergar uma demolidora crítica social: a bisavó punida com a náusea é uma espécie de Eva da sociedade burguesa, a qual, ao consagrar a dissociação entre o desejo e o amor através do casamento por interesse, detona um ciclo ininterrupto de deformações, em especial na vida íntima feminina, ora pelo exercício vicioso do desejo, ora por sua repressão violenta, ambas as atitudes igualmente deformadoras. Parece ingênuo afirmar isto, embora inevitável: por detrás da grandeza mítica de Doroteia, talvez se encontre uma simples ode ao amor. 

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