Ópera dos Mortos, de Autran Dourado

Editora Rocco

Numa pequena cidade do interior mineiro, o casarão se ergue soturno e enigmático; é símbolo do que poderia ter sido e não foi, o extravagante gesto ancestral que, não obstante, restou detido no tempo sem se completar. Conquanto incompleta, a grandeza esboçada parece bastar para entreter a conversa miúda de toda gente, articular-lhe os sentidos e afetos rumo a uma possível unidade superior; mas por algum tempo apenas.

Em Ópera dos Mortos, Autran Dourado nos apresenta as impressões deixadas na pequena cidade pela família Honório Cota, vocacionada pelas circunstâncias à proeminência local, e no entanto malograda nessa missão em virtude do desregramento dos representantes de três gerações, cada um a seu modo incapaz de corresponder aos anseios do entorno, e de ombrear a imponência e respeito inspirados pelos muros do casarão onde habitam.

Lucas Procópio, patriarca da família, impôs-se à força no lugar, ao mesmo tempo inaugurando a história local e esgarçando os nervos dos concidadãos mediante sua inclemência e ruindade. Paulista saído das jazidas esgotadas das Minas Gerais, estabeleceu-se ali construindo a casa de um lado e a igreja do outro, como extremidades do largo em torno do qual o povoado se desenvolveria. Demoníaco, porém, Lucas Procópio construiu destruindo, estuprando, intimidando, calando quem se lhe opunha, num movimento que inspirava medo e impotência, garantindo-lhe o monopólio das deliberações futuras sobre os destinos próprio e alheio.

João Capistrano Honório Cota, por seu turno, cresceu sob a sombra aziaga do pai, naturalmente não inclinado a contestá-lo, mas acalentando no íntimo uma conduta diferente, para quando tomasse as rédeas da vida nas mãos. Todavia, sua aparência quixotesca, de cavaleiro errante, era o prenúncio imagético do insucesso futuro, quando, decidido a cristalizar a influência da família em liderança política, será traído pela classe política local, numa fraude eleitoral que lhe privará do comando da Câmara de Vereadores, seu por direito. Profundamente ferido pela manobra traiçoeira, João Capistrano Honório Cota - sempre assim solene, sem reduções - caiu num ensimesmamento irrecuperável, de que as paredes do casarão que habita passaram a ser a manifestação imediata. A morte natural de sua esposa, dona Genu, marca um ponto de inflexão ainda maior, quando João Capistrano Honório Cota se expõe à vista de todos que invadem sua privacidade para prestar as últimas homenagens à defunta, e faz parar o grandioso relógio-armário da sala, tão famoso na região, como que indicando que morria para o mundo, a começar para aquela gente pouco confiável. Antes fizera o mesmo, em privado, com um relógio adornado por motivos da independência do Brasil, desse modo renunciando às esperanças políticas.

Os gestos de resignação do pai ao tempo passado e consumado são imitados por Rosalina, única filha do casal que conseguiu vingar após uma série funesta de abortos e mortes prematuras, quando João Capistrano Honório Cota morre e a casa é pela última vez em muito tempo invadida pela gente detestada: Rosalina desce as escadas como uma aparição fantamagórica e bela, e dependura outro relógio, que faz parar, ao lado dos do pai. Nada diz, nada revela, e retorna aos seus aposentos. A partir de então, Rosalina viverá enclausurada na mansão, assistida tão somente pela negra Quiquina, que é muda, e visitada anualmente pelo administrador Emanuel, extremamente discreto. O legado que defende é o do orgulho e despeito pelo povo traidor, que dela nada sabe, mas muito elocubra por força do mistério que inspira. Os únicos sinais de sua vida são as flores de tecido e papel que produz e são vendidas por Quiquina com bastante sucesso.

O romance de Autran Dourado trava diálogo profícuo com as mais antigas tradições literárias, bem como com certos modos arcaicos de organização social, na medida em que faz do casarão e seus insólitos habitantes o eixo a partir do qual as pessoas simples podem escapar ao ordinário de suas existências, articulando-se em torno de forças maiores e desconhecidas, as quais, se hoje se recusam a exteriorizar-se em luz e guiá-las, ao menos mantêm vivo o sentido da transcendência, apontando para possibilidades superiores de vida, ainda que malogradas. O casarão torna-se campo propício ao desenvolvimento da imaginação popular. Nos contos de fadas, as histórias de príncipes e princesas, sucessões periclitantes, esterilidades, monstros e criaturas fantásticas se desenvolvem em paragens remotas, geralmente não nomeadas, delimitadas pelos muros do castelo - espaço do extraordinário -, como que outorgando a cada ajuntamento humano a dignidade da aspiração a uma existência superior. Ao pôr sob a mira da gente simples de um pequeno povoado de Minas Gerais o casarão vistoso e os habitantes romanescos, Autran Dourado atualiza esse expediente literário tão antigo, como que saindo do universal em direção ao particular, e assim demonstrando - para além do fato literário -, que a carência humana de se entreter com possibilidades superiores de vida espraia-se por toda parte.

No espaço algo mítico do casarão, Rosalina cultiva sua vida interrompida pelo rancor, sempre igual, sempre infensa a mudanças, até que é visitada por José Feliciano, sujeito errante, vindo de Paracatu, no norte de Minas, de quem pouco se sabe, e cujo caráter estrangeiro, por distingui-lo do povo detestado, permite que se faça empregado da jovem e ultrapasse os portões proibidos aos demais. José Feliciano é o elemento inesperado vindo de longe, o único capaz de alterar o cotidiano aparentemente inalterável do lugar. Como nas histórias populares, de que são exemplo os já mencionados contos de fadas, José Feliciano evoca - embora vagamente e sem a caracterização explícita - a figura do príncipe que supera as defesas do castelo para resgatar a princesa; contudo, a atmosfera pesada do casarão e o modo de vida atávico de Rosalina não necessariamente se abrirão ao ar fresco que entra, antes ameaçando tragá-lo em sua voragem descendente.

Ópera dos Mortos faz-se então a história dessas relações, entre Rosalina e José Feliciano, e entre ambos e Quiquina, cujo cotidiano é também desestabilizado pelo advento do outro. Do desfecho dessa dinâmica relacional dependerá a restauração da família Honório Cota para a vida ou sua implosão final. No casarão onde se desdobra a trama, o tempo custa a passar: já foi silenciado três vezes, e agora só corre por conta do relógio que resta na cozinha, sob os cuidados de Quiquina. A essa pasmaceira de tarde quente sem fim, Autran Dourado faz corresponder a narração, valendo-se para tanto dos discursos indiretos livres e fluxos de consciência de Rosalina, José Feliciano e Quiquina. Junto com os personagens, nos arrastamos em longas recordações, expectativas e hesitações, cuja expressão é circular, sempre retornando ao atavismo do passado do qual é tão difícil se desprender. A tensão dramática está em sabermos se o círculo discursivo finalmente espiralará para fora, ou se colapsará voltando-se centripetamente para dentro. A interioridade vertiginosa dos personagens principais é pontuada pela voz do povo, que narra a história no que tem de acessível ao olhar extramuros, asseverando desconfianças e admoestações em reação aos acontecimentos, no que emula o coro das tragédias gregas e a encarnação que faz do senso comum*.

As histórias tradicionais que a obra evoca aguardam um final, uma solução para o impasse: o povo que se articula à volta do espaço reservado ao mistério espera que este possa finalmente permitir entrever-se por nesgas de onde emane a luz; até aguarda paciente o tempo dilatado de formação do gesto de abertura e comando, mas inspirado talvez por uma consciência cósmica que igualmente permeia os acontecimentos, sabe que algum desfecho deve haver, sob pena de o mistério se fechar hermeticamente e ser esquecido, enquanto outro, mais fértil na medida em que mais transparente, ocupa o seu lugar. O desfecho de Ópera dos Mortos obedece a essa dinâmica, indicando dessa maneira certa inexorabilidade de exigências do convívio humano, cujo desatendimento implica consequências necessárias. Uma regra universal de existência se prova assim caracterizada pela atualização no mais recôndito interior de Minas Gerais.

* comparação extraída do seguinte texto: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67421/opera-dos-mortos

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*** Ópera dos Mortos foi sucedido posteriormente por outros dois livros, numa trilogia: Lucas Procópio (https://amzn.to/3hFiweH) e Um Cavalheiro de Antigamente (https://amzn.to/3rP3gQX), respectivamente, sobre o avô e o pai de Rosalina, portanto tratando dos acontecimentos que antecedem os de Ópera dos Mortos.


Comentários

Unknown disse…
gostei vim pela tati
Espero que goste do conteúdo.
Unknown disse…
Seu texto é profundo Lucas, obrigado por essa análise pontual de Ópera dos Mortos.
Eu que agradeço pela leitura e apreço! Abraços.
Fernando Moraes disse…
Eu, como sabe, te acompanho pelo YouTube e Instagram, mas pela primeira vez li o blog. Você tem talento pra escrita crítica, Lucas! Profunda e sensível análise.
Bom dia, Fernando! Fico sinceramente contente por saber que gostou da minha escrita: apesar de ser a face menos visível do meu trabalho, é com certeza aquela que mais me dá prazer em executar, principalmente porque, em comparação com os outros veículos, a escrita é o que tem maior vocação para resistir ao tempo. Abraços! p.s.: espero que tenha a oportunidade de ler os demais textos.

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