Postagens

Mostrando postagens de janeiro, 2022

Doroteia, de Nelson Rodrigues

Imagem
  As quatro peças que integram o ciclo mítico de Nelson Rodrigues têm em comum o descolamento de tempo e espaço identificáveis. Apesar de elementos reconhecíveis como integrantes de uma sociedade historicamente determinada, o que nelas predomina são o essencial e o primitivo, de tal maneira que podem receber indistintamente a roupagem de culturas distantes ou a de um minimalismo que realce seu caráter arquetípico. Doroteia, “farsa irresponsável em três atos” que remonta a 1950, encerra o ciclo mítico promovendo um descolamento radical de tempo e espaço ao abolir as fronteiras da realidade, flertar com o surrealismo e, na visão de alguns, trazer para o palco o plano do inconsciente, assim como Vestido de Noiva fizera antes dela. O feminino, tão presente nas peças do dramaturgo, aqui é apresentado de forma igualmente radical, por meio da abolição completa das personagens masculinas. Mesmo a expressividade da face humana é radicalizada na sua cristalização em máscaras. O resultado é um qu

Álbum de Família, de Nelson Rodrigues

Imagem
  Se interpelado sobre a peça, o leitor que termina Álbum de Família não encontrará dificuldades em resumir a história: família tradicional mineira, com os pais e quatro filhos crescidos, além de uma cunhada; o casamento desandou; o marido odeia a esposa e a castiga levando meninas adolescentes para casa; brigas constantes; um dos filhos é louco, o outro um seminarista que abandona a vocação e volta pra casa, o terceiro um homem casado que se separa da esposa e também faz seu regresso, e a quarta uma estudante de colégio interno expulsa de lá por se envolver num romance lésbico com a colega: a casa está cheia de novo, os desentendimentos proliferam e, ao mesmo tempo, vai sendo revelado que cada um dos membros da família nutre algum sentimento incestuoso - resta saber exatamente em relação a quem e aonde ele levará. Muito embora o resumo seja a princípio fácil de fazer, é inevitável que o leitor o conclua com a sensação de que não conseguiu transmitir o motivo por que a peça é uma grand

Anjo Negro, de Nelson Rodrigues

Imagem
Em Anjo Negro, o local e o universal são indissociáveis. A um só tempo Nelson Rodrigues retrata o racismo brasileiro e evoca motivos próprios dos mitos e tragédias gregas. O dramaturgo é justamente conhecido por não se deixar deter por pudores na hora de expor as baixezas da sociedade em que vive; seria natural esperar, portanto, que a representação do racismo nacional fosse chocante, tanto é chocante na realidade essa doença social. Todavia, ao se valer da  tragicidade dos mitos gregos na exposição do problema local, o que já era abjeto se torna quase insuportável. Há assim um expurgo, a iluminação de uma chaga com luzes tão fortes que não mais é possível fingir que não se enxerga ou se resignar à inação. A catarse se impõe. A descrição do enredo é por si só desconcertante. Virgínia era órfã e por isso foi morar na casa de uma tia com várias filhas. Entre estas - jovens virgens que enfrentam dificuldades para casar -, certo dia uma delas arrumou um noivo. Próximo ao casamento, Virgíni

Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues

Imagem
Em 28 de dezembro de 1943, Vestido de Noiva estreava no Teatro Municipal do Rio de Janeiro para produzir dois efeitos permanentes: delimitar o antes e o depois da história teatral brasileira, e consagrar Nelson Rodrigues como o maior dramaturgo do país. A novidade da peça estava no uso de ferramentas próprias da encenação para levar ao palco a subjetividade da protagonista. A exploração da psicologia das personagens já era uma realidade no romance, porém faltava à dramaturgia formular a linguagem e obter os meios através do quais uma experiência semelhante pudesse ser feita dentro da objetividade da cena. Na peça, Nelson consegue que o teatro represente o mundo interior e convence o público de que os meios empregados não são só admissíveis, como também necessários; vale dizer, nem mesmo o romance poderia obter os mesmos resultados estéticos.  Alaíde e a irmã Lúcia cresceram numa casa que fora propriedade de uma meretriz - Madame Clessi -, que deixara no porão vários diários contando pa

O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues

Imagem
A peça O Beijo no Asfalto foi escrita por Nelson Rodrigues a pedido de Fernanda Montenegro em 1960. O título expressivo é o resumo do fato - ao mesmo tempo singelo e clamoroso - que dispara a ação dramática e os conflitos entre as personagens. O beijo dado gratuitamente é o gesto catártico que desafia os limites da compreensão e faz emergir inclinações reprimidas. Na obra, Nelson emprega o insólito para pôr à prova a normalidade aparente do entorno. Arandir e o sogro Aprígio vão à Caixa Econômica Federal para obter um empréstimo; no meio do caminho, um rapaz cai rente ao meio-fio e é atropelado por um lotação. No calor do momento, Arandir se aproxima do moribundo e o beija na boca. Entre outros passantes, o jornalista Amado presencia a cena. Por que Arandir beijou outro homem? Essa é a pergunta que persegue as personagens, incapazes que são de encontrar uma resposta ou renunciarem à busca. Duas testemunhas são responsáveis por difundir a notícia. Amado vê no que ocorreu uma oportunidad