Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues

Vestido de Noiva

Em 28 de dezembro de 1943, Vestido de Noiva estreava no Teatro Municipal do Rio de Janeiro para produzir dois efeitos permanentes: delimitar o antes e o depois da história teatral brasileira, e consagrar Nelson Rodrigues como o maior dramaturgo do país. A novidade da peça estava no uso de ferramentas próprias da encenação para levar ao palco a subjetividade da protagonista. A exploração da psicologia das personagens já era uma realidade no romance, porém faltava à dramaturgia formular a linguagem e obter os meios através do quais uma experiência semelhante pudesse ser feita dentro da objetividade da cena. Na peça, Nelson consegue que o teatro represente o mundo interior e convence o público de que os meios empregados não são só admissíveis, como também necessários; vale dizer, nem mesmo o romance poderia obter os mesmos resultados estéticos. 

Alaíde e a irmã Lúcia cresceram numa casa que fora propriedade de uma meretriz - Madame Clessi -, que deixara no porão vários diários contando passagens de sua vida pouco convencional. Ainda jovem, Alaíde teve contato com esses textos, que a levaram a pesquisar em jornais outras informações acerca da grande dama. Esses são os fatos remotos que antecedem a peça.

Pouco antes da ação cênica, Alaíde se casa com Pedro, homem roubado da irmã Lúcia. Há tensões no casamento, além de uma reaproximação entre Pedro e Lúcia.

Depois de uma briga com a irmã, Alaíde é atropelada por um automóvel no Rio de Janeiro. Tentativas são feitas para salvá-la, mas sem sucesso. Esses são os fatos que se desenvolvem no decorrer da peça.

Entre as realidades do acidente e da morte, no entanto, desenrola-se a peculiar ação cênica, consistente nas alucinações que acometem Alaíde enquanto agoniza.

Para representar essa história, Nelson divide o palco em três planos: realidade, memória e alucinação. 

No plano da realidade se desenvolvem passagens rápidas nas quais são mostradas as tentativas médicas de salvar Alaíde da morte.

No plano da memória as recordações da moribunda afloram, dando assim acesso ao seu passado.

No plano da alucinação são feitas associações originais entre elementos díspares, originários dos desejos, culpas, medos e lembranças da personagem.

A memória emerge da alucinação, a qual, por sua vez, é condicionada pela realidade. Entre os planos há interações e ecos.

Na encenação, o foco em um ou outro plano é colocado mediante artifícios técnicos, sobretudo de iluminação. Microfones emitem os ecos de um plano para outro. Escadas laterais proporcionam passagens.

À beira da morte, a mente de Alaíde fervilha com impressões, recordações e pulsões cujas raízes são distantes. No espaço da alucinação, os elementos formadores da personalidade são liberados e se revelam. A subjetividade - vê-se - não é formada linearmente; é, isto sim, um amálgama de componentes insólitos que se associam livremente, e apesar da estranheza de elementos e associações, constituem eles o que há de mais real e significativo na vida de alguém.

A memória se apresenta como mediadora entre o que acontece no mundo exterior e aquilo que o indivíduo retém para elaborar internamente. Preconceitos, medos e condicionamentos delimitam seu alcance e expressão, de modo que não constitui o retrato mais fiel da vida íntima.

No plano da alucinação a história pregressa emerge de forma nem sempre condizente com a realidade objetiva. Porém, a própria deformação da memória por pulsões, desejos, medos e culpas é o que mais importa para revelar quem é Alaíde. É fácil para Nelson orientar o público sobre o que é fidedigno ou não através das intervenções pontuais dos planos da realidade e da memória.

A alucinação de Alaíde não é uma alucinação qualquer: é a alucinação de quem está à beira da morte, portanto num ponto em que o essencial é objeto de atenção. O que sobra de sua vida e emerge no delírio é a suma de quem realmente era. A forte presença de Madame Clessi no plano da alucinação é uma boa demonstração disso. Por ela se vê que as leituras da juventude moldaram a personalidade e que as impressões então deixadas persistiram em detrimento das experiências subsequentes.

Mesmo num romance e dispondo de várias páginas para discorrer a respeito da interioridade de Alaíde, Nelson dificilmente seria tão efetivo em sua representação quanto o é através do teatro. A divisão em três planos e o foco sobre aquele da alucinação permitem-no trazer à tona o que realmente movia a protagonista. Alaíde se deixara impressionar pela vida não convencional de Madame Clessi de tal modo que se vira sob a necessidade de arrumar o marido roubando o parceiro da irmã; não lhe bastava encontrar alguém, era preciso um lance exuberante e transgressor. Essas leituras remotas surgem com força à beira da morte, e são o amálgama que junta numa mesma interioridade irreverência, culpa e medos. A seu modo, Alaíde é uma Madame Bovary carioca, e os diários de Madame Clessi, os romances românticos do século XIX.

Como nos melhores romances psicológicos, Nelson lança mão de um substrato fático simples - a rivalidade entre irmãs seguida de acidente e alucinação - para abrir as portas do abismo de complexidade que leva à formação de uma personalidade, ainda que banal. A agilidade dos diálogos e a objetividade das técnicas de encenação permitem-no falar muito sem cair em excesso de palavras, coisa difícil de evitar num romance. E é bom que assim seja, porque a interioridade é extremamente simbólica e, nesse sentido, plástica, ressentindo-se da verborragia que inevitavelmente tenta esgotá-la num discurso exaustivo. Em Vestido de Noiva, diálogos pontuais e ação cênica se unem para formar imagens eloquentes e significativas, e significativas justamente na medida em que não pretendem exaurir o que representam, antes simbolizá-lo. Daí ser possível afirmar que a peça é bem-sucedida não só por levar ao teatro a representação da subjetividade humana, como também por fazê-lo com resultados que o próprio romance teria dificuldades para obter.

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