O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues


O Beijo no Asfalto

A peça O Beijo no Asfalto foi escrita por Nelson Rodrigues a pedido de Fernanda Montenegro em 1960. O título expressivo é o resumo do fato - ao mesmo tempo singelo e clamoroso - que dispara a ação dramática e os conflitos entre as personagens. O beijo dado gratuitamente é o gesto catártico que desafia os limites da compreensão e faz emergir inclinações reprimidas. Na obra, Nelson emprega o insólito para pôr à prova a normalidade aparente do entorno.

Arandir e o sogro Aprígio vão à Caixa Econômica Federal para obter um empréstimo; no meio do caminho, um rapaz cai rente ao meio-fio e é atropelado por um lotação. No calor do momento, Arandir se aproxima do moribundo e o beija na boca. Entre outros passantes, o jornalista Amado presencia a cena.

Por que Arandir beijou outro homem? Essa é a pergunta que persegue as personagens, incapazes que são de encontrar uma resposta ou renunciarem à busca.

Duas testemunhas são responsáveis por difundir a notícia. Amado vê no que ocorreu uma oportunidade irrecusável de fazer sucesso no jornal em que trabalha; por isso publica uma reportagem sensacionalista de primeira página explorando o beijo e as relações hipotéticas entre Arandir e o atropelado. Aprígio precisa dar a notícia à filha Selminha, já que o marido dela está retido no distrito policial prestando depoimento e assim se atrasa na volta à casa.

A abordagem sensacionalista de Amado promove uma escalada de especulação e desinformação. Hipóteses umas piores que as outras são lançadas para explicar o beijo, inevitavelmente marcadas por imoralidade e abjeção. Tanto os colegas de trabalho quanto a vizinhança do casal se apropriam da notícia e dela se valem para escarnecer de Arandir e zombar de Selminha. A relação conjugal é estremecida.

Aprígio tampouco é um bom mediador. A forma como relata o que viu à filha só faz insinuar dúvidas sobre a correção do comportamento de Arandir, ao mesmo tempo que ressuscita antigas suspeitas quanto ao sucesso do casamento. Certa recusa de Aprígio em admitir Arandir como genro emerge. Parece que Dália, a outra filha de Aprígio que vive com a irmã, se interessa pelo cunhado. Entretanto, Selminha persiste na tentativa de aceitar e compreender o que Arandir fez; vai gradativamente, porém, se evidenciando que suas convicções estão por um fio.

Repetidamente interpelado, o próprio Arandir demonstra não compreender o que o levou a beijar outro homem.

A peça avança e o público conhece mais a respeito das personagens: invariavelmente personalidades e comportamentos mesquinhos e questionáveis. À medida que o entorno vicioso é desnudado e que aqueles que antes julgavam Arandir se revelam sujeitos desviantes da moralidade professada, tanto o público como o protagonista começam a compreender o que se passou.

O beijo foi dado de forma gratuita e espontânea. Diante da humanidade em declínio do rapaz atropelado, o que havia de bom em Arandir foi despertado e, contra todas as expectativas, o impulso não foi reprimido e o beijo foi dado como sinal possível e singelo de compaixão desinteressada. Justamente por ser assim tão puro, o beijo não pressupunha nenhuma finalidade, não se valia do rapaz beijado como um meio para qualquer fim: beijar o rapaz era um fim em si mesmo, tal como todo homem deveria ser sempre fim, e não meio. Arandir se dá conta de que o simples beijo que se permitiu dar foi o ato mais bondoso de sua vida. Daí sua força catártica, deflagradora de reações extremas.

Num universo de interesses vis e relações interessadas, Nelson lança um gesto desinteressado de bondade a fim de, por contraste, revelar que a normalidade incapaz de algo semelhante era viciosa e reprovável.

As personagens não dispõem de imaginação moral para compreender a existência daquele beijo gratuito. Precisam apoiar-se umas às outras em suas fraquezas, através de mentiras e fofocas. A aceitação do simples fato é impossível. Na peça, a desorientação dos envolvidos é expressa pelas muitas falas entrecortadas, abruptamente interrompidas por pontos finais, como se fossem espasmos. As personagens não dispõem de linguagem para articular a experiência que se apresenta, além de estarem sob o risco concreto de perderem a linguagem de que dispunham até então para dar conta do conhecido.

Diante desse desafio, somente Arandir se sagra vencedor, posto que tragicamente. Era preciso expurgar da normalidade vigente um ato desviante que se mostrara tão comprometedor.

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