Álbum de Família, de Nelson Rodrigues

 

Álbum de Família, de Nelson Rodrigues

Se interpelado sobre a peça, o leitor que termina Álbum de Família não encontrará dificuldades em resumir a história: família tradicional mineira, com os pais e quatro filhos crescidos, além de uma cunhada; o casamento desandou; o marido odeia a esposa e a castiga levando meninas adolescentes para casa; brigas constantes; um dos filhos é louco, o outro um seminarista que abandona a vocação e volta pra casa, o terceiro um homem casado que se separa da esposa e também faz seu regresso, e a quarta uma estudante de colégio interno expulsa de lá por se envolver num romance lésbico com a colega: a casa está cheia de novo, os desentendimentos proliferam e, ao mesmo tempo, vai sendo revelado que cada um dos membros da família nutre algum sentimento incestuoso - resta saber exatamente em relação a quem e aonde ele levará. Muito embora o resumo seja a princípio fácil de fazer, é inevitável que o leitor o conclua com a sensação de que não conseguiu transmitir o motivo por que a peça é uma grande obra, antes deixando em seu interlocutor a percepção de que Nelson Rodrigues é repetitivo e só faz chocar gratuitamente. É preciso, portanto, escapar da facilidade do resumo e se estender na explicação a fim de demonstrar onde se encontra o mérito de Álbum de Família.

Depois do sucesso de Vestido de Noiva em 1943, a repetição de fórmulas e a vontade de agradar eram tentações à espreita de Nelson. Todavia, indo contra o que se poderia esperar, o escritor decidiu valer-se da fama conquistada como liberdade para se lançar a fundo nos abismos da natureza humana que havia começado a desvendar; em suas próprias palavras, “Álbum de Família é uma peça suicida, que da primeira à última linha desiste do aplauso crítico e tranquilamente admite a própria destruição” - nela, “[f]ui até as últimas consequências do assunto. Mergulhei no abismo”.

O abismo é a família marcada por incesto e violência. Conforme a casa se enche de novo com os filhos, e as pulsões do sexo e desavenças ganham expressão, uma moça estuprada por Jonas está no curso de um parto normal fadado ao fracasso por conta da sua constituição física - como as personagens não se cansam de dizer, a moça é “estreita”. Ela uiva clamando por socorro e vocifera amaldiçoando o autor da sua desgraça. As personagens pouco fazem por ela, indiferentes que estão à sua morte próxima. Os uivos vindos do interior da casa são respondidos pelos uivos que vêm do lado de fora, onde Nonô grita feito bicho e rola no chão pelado. As personagens tampouco se incomodam com ele: o que lhes prende a atenção são as paixões que sentem umas pelas outras.

O mesmo fechamento em si que impede a família de se compadecer com os uivos que ouve, constitui o tempo e espaço que habitam. Muito embora se diga que a família é mineira e que a casa está próxima a Três Corações, a trama leva a crer que as personagens habitam tempo e espaço desgarrados dos do comum dos homens. O tempo e espaço habitados são resultados diretos dos liames de desejo e repulsa que amalgamam pais e filhos. Sendo assim, tanto é possível dizer que são mineiros como que são japoneses, romenos, somalis ou mexicanos. Pais e filhos estão mais próximos da essência dos arquétipos do que das particularidades das sociedades históricas.

A essencialidade constitutiva de arquétipos e mitos é justamente o elemento que permite divisar em Álbum de Família o ponto de transcendência entre o mero acúmulo de situações chocantes e o estudo sobre a natureza dos desejos humanos e a formação da sociedade, no qual se firma como peça de arte sólida e original. 

O desejo sexual é um imperativo humano e se faz presente desde os primeiros anos. Decorre da necessidade básica do ser de se preservar mediante a perpetuação numa descendência. Como algo que eclode tão cedo e no próprio mundo infantil, pode-se cogitar que a criança encontra nos familiares os primeiros objetos de desejo, dada a proximidade natural e a ausência de outras referências; é assim possível pensar numa inclinação incestuosa da criança nos primeiros estágios do seu desenvolvimento. Entretanto, a criança não é a primeira criança da espécie, e antes dela há o conhecimento adquirido e transmitido ao longo da história que identifica no incesto a destruição biológica e social; daí haver o tabu do incesto, interdição forte o bastante para fazer frente à potência da espontaneidade infantil. O incesto é percebido como caminho para a destruição seja porque inviabiliza biologicamente uma descendência, seja porque encerra os membros da família na sua estrutura, dificultando a abertura ao outro e, por consequência, o estabelecimento de uma sociedade para além do núcleo consanguíneo.

Em Álbum de Família, as personagens não conseguiram vencer o estágio mais básico da educação do desejo. O tabu formado pela cultura não foi capaz de lhes interditar o incesto; por isso se entregam sem resistências às pulsões sexuais básicas, fechando-se no círculo estreito de suas relações e seguindo num crescendo de reações passionais insuscetíveis a freios. Sendo falha a humanização das personagens em estágio tão essencial para a diferenciação entre o meramente animal e o humano culturalmente condicionado, daí exsurge não um ato isolado de incesto, mas sim uma sequência vertiginosa de desejos incestuosos e violência. O excesso trazido por Nelson, portanto, não tem por propósito chocar gratuitamente; ele é antes a expressão do quão baixo pode levar a falha de um tabu tão básico como esse. À vertiginosa quantidade de incestos da peça soma-se a ausência de filtros com os quais as personagens se expõem: para indivíduos que não foram detidos pelo tabu essencial, seria difícil pensar no funcionamento de freios à mera expressão verbal.

A incapacidade dos membros da família de superarem o núcleo consanguíneo é representada de várias formas. As moças estupradas por Jonas não chegam ao fim da gravidez, pois antes são colhidas pelo aborto ou a morte. A família é insensível aos gritos da parturiente, que agoniza. Nonô, apesar da loucura que o poderia levar a outros espaços, ainda que internos, permanece rondando a casa do lado de fora, simbolicamente atado a ela. Guilherme desiste da vocação e volta para casa. Jonatas desiste do casamento e volta para casa. Glória acaba se envolvendo numa aventura que sabe ser proibida e também volta para casa, expulsa da comunidade extramuros com a qual é incompatível. O núcleo consanguíneo exerce atração irresistível. A sociedade não pode depender dessas pessoas para existir, porque elas não estão disponíveis e acabarão por se autodestruir. Qualquer consórcio é potencialmente tóxico.

O chocante na peça, ao fim e ao cabo, é o que nela há de mais moralizador. O excesso da perversão é o instrumento de Nelson Rodrigues para tornar evidente a repulsa à vazão irrestrita dos desejos, assim como a necessidade das interdições da cultura para a subsistência da humanidade. Vale para Álbum de Família o que Hilda Hilst afirma em sua entrevista à TV Cultura de 1990: “[...] a verdadeira natureza do obsceno é a vontade de converter [...] porque, de uma certa forma, se você for consideravelmente repugnante, você faz com que o outro comece a querer a nostalgia da santidade”.

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