Anjo Negro, de Nelson Rodrigues


Anjo Negro

Em Anjo Negro, o local e o universal são indissociáveis. A um só tempo Nelson Rodrigues retrata o racismo brasileiro e evoca motivos próprios dos mitos e tragédias gregas. O dramaturgo é justamente conhecido por não se deixar deter por pudores na hora de expor as baixezas da sociedade em que vive; seria natural esperar, portanto, que a representação do racismo nacional fosse chocante, tanto é chocante na realidade essa doença social. Todavia, ao se valer da  tragicidade dos mitos gregos na exposição do problema local, o que já era abjeto se torna quase insuportável. Há assim um expurgo, a iluminação de uma chaga com luzes tão fortes que não mais é possível fingir que não se enxerga ou se resignar à inação. A catarse se impõe.

A descrição do enredo é por si só desconcertante.

Virgínia era órfã e por isso foi morar na casa de uma tia com várias filhas. Entre estas - jovens virgens que enfrentam dificuldades para casar -, certo dia uma delas arrumou um noivo. Próximo ao casamento, Virgínia trai a prima com o noivo e por esse motivo a prima se suicida. Por vingança, a tia convida o médico Ismael, negro bem-sucedido que renegava suas origens, a fim de que viole Virgínia.

Depois do estupro, os dois passam a viver juntos como casal, porém Virgínia não aceita essa relação, não só por ter sido violada, mas principalmente por Ismael ser negro. Têm três filhos, e os três morrem ainda crianças. Na verdade, ela os mata.

Ismael isola Virgínia do convívio com outras pessoas. Apenas a tia e as primas a visitam por ocasião dos enterros.

No funeral do terceiro filho, o irmão de criação de Ismael, Elias, que é branco e cego, aparece na casa, transmite a maldição que a mãe lançara sobre Ismael por ter renegado a família, e acaba se envolvendo sexualmente com Virgínia, que engravida. Ismael assassina o irmão atirando em seu rosto.

Virgínia mantém a gravidez e dá à luz Ana Maria, que é branca. Ismael toma a menina para si, cega-a e a convence de que é branco e o resto do mundo é preto e desprezível. Tem relações com ela.

No final, Ismael e Virgínia sucumbem ao desejo mútuo e voltam a se relacionar e gerar filhos, os quais provavelmente não vingarão. Matam Ana Maria.

O tempo e o espaço em que os fatos transcorrem são indefinidos. Quase sempre é noite, e a noite persiste apesar da passagem dos dias. Pontuando a ação dominada pelo casal Ismael e Virgínia, vez ou outra aparecem mulheres negras reunidas para comentar o que acontece: atuam como coro e são a voz do senso comum. Alguns homens negros igualmente aparecem por ocasião dos enterros e comentam os fatos. A tia e as primas são visitantes funestas, ciosas de se certificar da infelicidade de Virgínia. A cama em que Virgínia foi violada permanece no mesmo estado em que foi deixada depois do estupro. O clima é soturno e vicioso.

Ismael não aceita sua negritude na mesma medida em que o mundo não a aceita. Deseja a mulher branca, deseja o branco, mas só consegue acessá-lo mediante a violência resultante da impossibilidade de o ser.

Virgínia é condenada a viver com Ismael. Sem prejuízo da violência do primeiro encontro entre os dois, sua infelicidade persiste porque, ao mesmo tempo que deseja, reprime o desejo que tem, pois Ismael é negro e é inaceitável desejar um negro.

O impulso sexual humano que lhes é comum, no entanto, repetidamente os une. Segue-se naturalmente a perpetuação da união, que são os filhos. Contudo, os filhos são marcados pelo que ambos rejeitam: a negritude. Virgínia não suporta conviver com a síntese do seu desejo e da sua repulsa, e por isso mata os descendentes. Ismael sabe dos assassinatos, mas nada faz para detê-los: ele também não aceita os descendentes, sem saber, porém, como se perpetuar libertando a prole do seu estigma.

É um fato indiscutível que, inobstante a mútua repulsa, Ismael e Virgínia se unem e são capazes de gerar filhos. As primas de Virgínia não podem dizer o mesmo. São obrigadas a se resignar a uma virgindade que detestam, e ardem de desejo insatisfeito a ponto de morrerem loucas. Constituem um contraponto à esterilidade proposital do casal, além de uma crítica constante ao fato de que, mesmo dispondo do dom de criar, optam por destruir.

Ana Maria é por um tempo assumida por Ismael como a filha branca, a descendência possível e sem estigma que sempre desejara. Essa é uma ilusão que logo encontra as razões de sua impossibilidade.

Ismael e Virgínia então concluem a peça consumando o eterno retorno de suas vidas: sucumbir ao desejo, criar e matar depois.

Por meio de uma trama sobremaneira chocante e de ecos míticos evidentes, Nelson emprega o essencial a fim de falar do contingente. Desce aos abismos da alma humana para revelar as raízes insondáveis das práticas cotidianas. O que encontra ali espanta, e parece só restar o espanto como tentativa de escape das leis de eterno retorno a que a sociedade está submetida.

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