Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han


Editora Vozes audiolivro

Privar-se de ler certos livros sob o argumento da falta de preparo é uma falha que impede o acesso a porções de conhecimento da maior importância. Acontece muito com poesia, ciências e filosofia. A leitura não é feita porque é preciso antes entender de métrica e escansão, dominar a linguagem especializada da ciência, ou ler todos os gregos e modernos para só depois ler o livro do filósofo contemporâneo que acaba de ser lançado. É certo que tradição e especialização não podem ser desprezadas, e que de um especialista é legitimamente esperado o domínio amplo do seu campo de conhecimentos; não é menos certo, porém, que a impossibilidade prática de em tudo especializar-se não impede o indivíduo de acessar campos do saber distantes de sua área de atuação, e que sua leitura leiga, conquanto menos profunda que a de um técnico, proporcionará a ele conhecimentos valiosos, capazes de alterar positivamente a rota de seus pensamentos e ações.

Nesse contexto, é sempre um evento feliz quando algum livro especializado rompe a fronteira dos especialistas, atingindo a atenção de leigos que muito têm a aproveitar do seu conteúdo. Foi isso o que aconteceu com Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha. Tão difundida se tornou a obra do filósofo oriental que não só foi traduzida para o português, como também disponibilizada em audiolivro; por causa dessa particularidade, deparei-me com ela e descobri toda uma forma nova de abordar o cotidiano, cujo potencial de alteração da minha rota de pensamentos e ações é bem grande.

Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han defende a tese de que o nosso tempo se diferencia do período que o precedeu em razão de um critério patológico: enquanto o tempo pretérito era caracterizado pelo dever e pela disciplina, isto é, pelo excesso de negatividade, em que o diferente deve ser eliminado como uma bactéria, o tempo atual é caracterizado pelo poder e pelo excesso de positividade, em que o indivíduo convive bem com o outro, mas não consigo mesmo, na medida em que se exige um nível de desempenho que não é capaz satisfazer. A sociedade do passado é a sociedade disciplinar descrita por Foucault e Freud, em que, no ambiente de presídios, hospitais e fábricas, um outro exige do indivíduo o cumprimento de um dever, ou seja, o desenvolvimento de determinado comportamento, sob pena de punição e a promessa de recompensa ou instância de gratificação. A sociedade atual, por outro lado, é a sociedade do desempenho; a partir de determinado ponto, a produtividade do indivíduo não aumenta em razão da exigência do dever por um outro, fazendo-se, portanto, necessário que o próprio indivíduo represente para si os papéis de senhor e escravo: a produtividade passa a decorrer da positividade do poder, confundindo-se a liberdade com o exercício do desempenho máximo. Na sociedade do desempenho, não há futuro utópico ou promessa de vida após a morte; há a completa desnarrativização do mundo, de modo que o desempenho se esgota em si mesmo, não é feito em favor de nada específico, consistindo a vitória do senhor interno na morte do escravo interno, a qual, ao fim e ao cabo, é a morte do próprio sujeito de desempenho. O sujeito é reduzido a uma função produtiva. Não há mais preocupação com o bem viver, que pressupõe a pausa e certa narratividade, e sim tão somente com o sobreviver. Quando sobreviver se torna a principal preocupação, desponta o culto à saúde do corpo como bem supremo: afinal, sem o corpo não é possível desempenhar a função de desempenho. Depressão, burnout e TDAH são doenças da sociedade do desempenho, consequências de um excesso de positividade, do esgotamento do indivíduo na tentativa de ser ele mesmo. Não são doenças infecciosas, causadas pelo outro estranho, mas resultados de um excesso de si mesmo.

Em contraposição a uma sociedade de desempenho assim tão positiva, Byung-Chul Han propõe a pausa, o tédio, o ócio e até mesmo a ira. Ao fazer tais proposições, seria previsível que remontasse à antiguidade e ao apreço do ócio que os antigos cultivavam; como, porém, este é um livro firmemente calcado no mundo atual, o filósofo prefere dialogar com interlocutores mais recentes, mais próximos de todas as particularidades dessa experiência. Por isso dialoga, entre outros, com Hannah Arendt e seu Vita Activa; Nietzsche e seu super-homem; Giorgio Agamben e sua análise de Bartleby, personagem célebre de Herman Melville que é o epítome da inação.

Ao tecer suas considerações sobre a importância da pausa e do tédio, Byung-Chul Han compara eficazmente o movimento incessante da sociedade do desempenho ao rolar mecânico de uma pedra, completamente cego. A pedra que rola mecanicamente, assim como a máquina e o computador, não hesita em seu movimento: não tem essa capacidade. Só a hesitação numa pausa; a recusa em seguir o movimento mecânico que proporciona a reflexão; o escolher entre um caminho e outro; o abrir mão de um caminho em benefício de outro; são capazes de agregar inteligência à fatalidade dos movimentos do mundo. No mesmo sentido, um olho que estivesse aberto a todas as imagens, sem recortes ou possibilidade de não ver, não seria capaz de inteligência e escolha, pois estaria absorvido e reduzido à totalidade do mundo exterior.

Um exemplo especialmente interessante da fatalidade da sociedade de desempenho contemporâneo é dado pelo filósofo ao relembrar a lição de Aristóteles segundo a qual uma das três formas de vida livre é a produção de belos atos na pólis. Byung-Chul Han faz a observação perspicaz de que os políticos modernos vivem segundo as leis da necessidade e da falta de alternativas: tudo é apresentado como indispensável à manutenção da mera sobrevivência; sequer se cogita na política como atividade de apresentação de formas de vida belas para além das simples utilidade e necessidade. Penso que as atuais crises fiscais, com seus agentes de solução determinados a operar redução de benefícios e serviços, representam um pouco dessa dinâmica. Não quero com isso afirmar que os problemas não existem e que não devem ser solucionados; o problema maior, a meu ver, está no espírito com que as soluções são adotadas. Por exemplo, quando agentes estatais propugnam que as pessoas trabalhem por muito mais tempo antes de se aposentarem, o que é levado em consideração é a urgência da pressão fiscal e seus reflexos na economia; trabalha-se sob a premência de as contas fecharem ao final do exercício; é difícil divisar nesses agentes o pensamento de que, depois de fechadas as contas, haverá a oportunidade de propor um modo de vida mais belo, como a volta a uma aposentadoria maior para o fim de melhor contemplar o mundo e fruir a vida; não, a mera tarefa de fechar as contas já é vista como o ápice da realização política. Nesse cenário, não há verdadeira liberdade, no sentido de Aristóteles, mas, no máximo, o enfrentamento de forças anônimas. É como se o homem se conformasse com vencer as forças adversas da natureza e depois não fizesse mais nada: basta estar protegido da chuva, da fome, do frio e dos animais ferozes, sem que depois sobrevenham filosofia, arte, reflexão, ciência, culto e diversão.

A diversão é a alma da festa. E é com o exame do que seja a verdadeira celebração que o filósofo sul-coreano encerra o seu livro. Pequeno em número de páginas, Sociedade do Cansaço é extremamente denso em seu conteúdo, o que não significa ser excessivamente complexo e impenetrável ao entendimento do leitor leigo; muito pelo contrário. Byung-Chul Han dispõe de um estilo lapidar, extremamente objetivo, capaz de falar muito com poucas palavras, sem com isso soterrar o leitor com o peso do que fala. Sua escrita encerra camadas: as da superfície já são extremamente inteligíveis e proveitosas, mas não prejudicam as mais profundas, que se revelam à medida das releituras e dos conhecimentos especializados de quem lê.

O diagnóstico do filósofo é uma intervenção imprescindível no mundo atual; é ele mesmo uma pausa na sociedade do desempenho que permite o exercício da potência da negatividade, isto é, do parar e dizer não ao rolar mecânico da pedra, em busca de caminhos alternativos. Não é livro de conotação política ou panfletário em qualquer outro sentido: é apenas a observação sincera de que a sociedade atual não é o paraíso terreno, e portanto merece críticas e correção de seus rumos. Vale a pena conhecer as ideias de Byung-Chul Han e a partir delas pensar a própria vida: vivemos de fato ou contentamo-nos com sobreviver?

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