O Aleph, de Jorge Luis Borges - Emma Zunz, A Casa de Astérion e A Outra Morte

O Aleph, de Borges (Companhia das Letras)
Emma Zunz

Emma Zunz começa com o recebimento pela protagonista homônima de uma carta na qual é dito expressamente que "o senhor Maier [seu pai, que morava no Brasil] ingerira por engano uma forte dose de Veronal e falecera". Segue-se a descrição do mal-estar sentido por Emma e logo no início do terceiro parágrafo já é dada a informação de que se tratava de um suicídio: o caminho percorrido pela personagem entre a afirmação de uma morte acidental e a convicção íntima do suicídio não é explicitado. O suicídio, por sua vez, une-se no interior de Emma à confissão que o pai lhe fizera de que Loewenthal, com quem trabalhava, era o ladrão, derivando dessa circunstância e do erro no reconhecimento do verdadeiro culpado a também relembrada série de infortúnios que acometeram o pai e o afastaram para longe. Loewenthal ainda mantém contato com Emma por ser um dos donos da fábrica onde trabalha.

No quarto parágrafo, Emma vive a sexta-feira como de costume, trabalhando na fábrica e conversando com as amigas, para ao final preparar uma sopa no jantar e dormir. O sábado encontra Emma despertando para a execução de um plano antes imaginado, que tem início com um telefonema a Loewenthal, buscando um encontro em que possa delatar uma greve iminente, e prossegue à tarde, quando se deita pela primeira vez com um homem, um desconhecido encontrado na região do porto. A experiência é traumática e à essa altura da narrativa é dito que aquele era um sacrifício levado a cabo em favor do pai, entretanto a imagem do pai fazendo semelhante coisa à mãe aflora de repente, o que a desconcerta. O encontro com Loewenthal na fábrica vem na sequência e nesse ponto já é dito com clareza que Emma pretende matá-lo para vingar o pai; a motivação, porém, parece substituída pelo ultraje mais recente sofrido no porto. A oportunidade surge, Emma dispara contra Loewenthal, a sequência dos tiros é mais confusa do que imaginara e, quando finalmente anuncia à vítima o motivo da vingança, conforme planejara, não mais encontra alguém capaz de ouvir. O que vem depois é a atitude segura da protagonista, que dispõe os elementos da cena da forma que melhor lhe convém e telefona para a polícia, denunciando um estupro só detido pela defesa armada. O último parágrafo é lido com todos os fatos tendo acontecido, e o que nele se lê descreve a acolhida que a versão de Emma encontra, inclusive por ela mesma:

Com efeito, a história era incrível, mas se impôs a todos, porque substancialmente era verdade. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que sofrera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios.

Como em outros contos, Borges aqui estabelece e sustenta com mão firme do começo ao fim um clima de introspecção agitada, em que Emma é tomada por um turbilhão de sentimentos - tanto é assim que se torna assassina em menos de dois dias -, sem, no entanto, deixar transparecer a sua agitação, no interior da qual ordena os elementos que a perturbam mais por justaposição do que por associações efetivas de causa e efeito. A atmosfera é igualmente precisa: as indicações da fábrica, do porto parecem suficientes para imprimir no leitor a imagem de um dia nublado, Emma vestida com sobriedade e caminhando por lugares tingidos de marrons desgastados, em muitos trechos um chão de terra e águas cinzentas como o céu.

O último parágrafo abre decisivamente o conto para o universo borgeano mais amplo: a coerência e associações que moveram Emma ao crime não dizem respeito às leis materiais da causalidade - por isso é fácil e indiscutido passar da notícia de uma morte acidental rumo à atribuição de culpa pelo suicídio originada em fatos antigos contados ao pé do ouvido; dizem respeito, isto sim, à continuidade dos afetos de Emma, os quais, se por um lado justapõem elementos díspares, por outro são a cola que os conserva rigorosamente associados, de modo que não só a própria Emma sofre os seus efeitos - a ponto de matar imediatamente motivada por uma causa que não era a original -, como também os que investigam o crime, pois sua coerência ostenta uma gravidade vital que convence. Borges privilegia a verossimilhança afetiva em detrimento da causalidade material, o que é imaginado se sobrepõe ao que existe. De certo modo, Emma se conta progressivamente uma história que parece mais real do que a realidade, justamente porque, diferentemente desta, fecha-se num círculo perfeito. Borges sabia que semelhantes círculos perfeitos dificilmente seriam encontrados do lado de fora.

Edwin Williamson, biógrafo do escritor, vê no conto a transferência a Emma dos sentimentos conflitantes que Borges experimentava em relação ao corpo e a sexualidade, na medida em que, também aos dezenove anos, passou por uma experiência traumática com uma prostituta Suíça (p. 363/364). Beatriz Sarlo também destaca o elemento sexual do conto, naquilo que ele tem de perturbação e não aceitação por Emma, a ponto de se tornar outra causa do assassinato, e não mero instrumento em função da causa original; segundo a argentina (p. 125):

Emma pretendeu que seu corpo fosse o suporte da prova de que a morte de Loewenthal tinha um motivo que valia como atenuante exculpatória. Essa função despojava o corpo de suas razões, submetendo-o à lógica de um projeto que somente o utilizava como um objeto; porém, quando se deu "a coisa horrível", o corpo revelou seu potencial de conhecimento e de lembrança. O corpo mostrou sua independência perante os passos de um plano que pretendia anulá-lo, transformando-o em objeto passivo, governado pela consciência. O corpo é o que Emma menos conhece. A '’racionalidade" de seu projeto não levava em conta, naturalmente, aquilo que Deleuze, a respeito de Espinosa, chama de "o desconhecido do corpo".

Cabe pensar que o conflito de sexual de Emma é um dos elementos da cola afetiva que conserva os elementos díspares da cadeia causal rigorosamente associados. Há algo de estudo psicológico e alusão ao inconsciente na narrativa.


A Casa de Astérion

A Casa de Astérion é um exemplo da capacidade que Borges tem de se apropriar literariamente da arquitetura. O conto começa com o discurso de uma personagem estranha, que se mostra franca ao leitor, posto que excêntrica. O relato sobre si mesma é pontuado de referências arquitetônicas, o que denuncia a influência do estrutural sobre o afetivo: é uma casa de infinitas portas, sem um único móvel, na qual não há fechaduras, composta por galerias amplas de pedra, cisternas, terraços, pátios, bebedouros e manjedouras, repetidos muitas vezes, de modo que todo lugar é outro lugar. Ao redor há catorze mares e templos: não obstante o número, são infinitos. A cada nove anos, nove homens ingressam na casa para serem devorados pelo sujeito que narra; a aleatoriedade da queda de cada um permite marcar a distinção entre uma galeria e outra, no mais indistintas. O narrador nesse ponto da descrição já não consegue disfarçar o tédio que o cerca, deixando escapar a confissão de que espera um redentor; cogita se ele será um homem, um touro, ou alguém como ele, isto é, nem um homem nem um touro. Dito isso, os dois últimos parágrafos registram sua morte pela espada de Teseu, que finalmente revela quem é a vítima: o Minotauro.

Muito embora a identidade da personagem esteja revelada desde o título, além de corroborada pela epígrafe, Borges é hábil ao escolher as palavras, valendo-se do menos conhecido nome Astérion em vez do inequívoco Minotauro, de modo que para a maioria dos leitores a dúvida cresce junto com a narrativa; ao mesmo tempo, a descrição da arquitetura do labirinto e seus efeitos sobre o habitante do lugar permitem a sensação de iminente descoberta, embora essa venha apenas no final, feito um relâmpago, formada pela alusão ao touro seguida da cena com Teseu.

Parece insinuada uma pergunta: se a arquitetura repetitiva do labirinto molda o Minotauro e o aprisiona apesar das portas abertas, a realidade que é sempre a mesma em suas leis não nos aprisionará igualmente, muito embora existam portas abertas e um lado de fora? Afora isso, parece sugerido que a redenção é a libertação da horizontalidade, do que se extrai que o vertical é o caminho; porém, Teseu não pode ser o redentor, dado que não consegue elevar, apenas suprimir.


A Outra Morte

Em A Outra Morte, Borges retoma o tema da coerência afetiva dos fatos, exposto em Emma Zunz, colocando-o ao lado de outras especulações acerca das relações causais. O conto parte do seguinte evento: o narrador recebe a carta de um amigo com a notícia da morte de um velho conhecido, Pedro Damián, que lutara na batalha de Masoller, ocasião na qual teria se portado com coragem; a notícia é acompanhada de outros detalhes circunstanciais. Algum tempo depois, diante de outro interlocutor, o nome de Pedro Damián é mencionado; para sua surpresa, porém, é dito que este não agira com bravura, antes tendo passado um pouco de vexame na batalha de Masoller. Passado mais um intervalo, junto ao segundo interlocutor, um terceiro se acrescenta, oportunidade na qual o nome de Pedro Damián volta a ser mencionado, desta vez para ser louvado pelo terceiro como alguém que morreu em combate há muitos anos na batalha de Masoller, o que não é negado nem confirmado pelo segundo, que agora jura ser a primeira vez que ouvia semelhante nome; depois, no entanto, há uma nova retificação, e o segundo interlocutor volta a se lembrar de Pedro Damián, porém não como um covarde, mas sim como um corajoso. No intervalo entre uma coisa e outra, diante daquele primeiro amigo, defronta-se com a afirmação de que este jamais ouvira falar em Pedro Damián, negação que se estende a outros elementos circunstanciais da carta. O narrador busca vestígios materiais de Pedro Damián e não os encontra.

Entre as várias explicações propostas para o fenômeno, há a de que, na hora da morte, o covarde Pedro Damián tanto ansiou por superar a vergonha da batalha de Masoller, que delirou revivendo os fatos de modo a sair deles como homem corajoso e vencedor, embora morto em batalha. Por força do seu querer, Pedro Damián morreu em 1946 a morte de 1904. É a coerência afetiva de Emma Zunz, que pode sobrepujar a realidade dos fatos.

Em outra especulação, Borges se aproxima da estrutura labiríntica de A Casa de Astérion. Segundo a Teologia, Deus não pode fazer com que o passado não tenha sido. A concatenação de causas e efeitos é tão imperiosa que, suprimido um único fato do passado, outra história universal decorreria. Não se trata do labirinto exato, mas da repetição que apresenta apenas uma ligeira diferença, a qual é o bastante para derivar um mundo distinto.

Independentemente da explicação correta para o que acontece com o narrador, o certo é que Borges trabalha no conto, uma vez mais, o tema da instabilidade do real, o qual, mediante ligeiras diferenças na combinação dos elementos constitutivos, é capaz de gerar mundos novos; a criação literária, portanto, tem mais a ver com o existente e sua ordenação do que com a expressão da completa originalidade.

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** essas são as edições nas quais me baseei para escrever este texto e são citadas.

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