A República dos Sonhos, de Nélida Piñon

 


A República dos Sonhos, de Nélida Piñon, é romance de vulto publicado em 1984 - portanto há quase quarenta anos -, cuja pouca leitura e referência pelo leitor médio desde então só se explica por nossos persistentes desinteresse pela cultura e desigualdade social, e consequente baixa difusão dos bens culturais. O livro é grandioso por dois motivos: porque fornece panorama humano de grande amplitude e profundidade, com o qual se articulam importantes temas das histórias universal, brasileira e moderna; e porque consiste numa obra de fôlego, com aproximadamente setecentas páginas - obviamente, tamanho não importa qualidade, mas não deixa de ser interessante travar contato com um romance brasileiro tão extenso, quando nossa literatura historicamente se caracteriza por narrativas curtas.

Nélida Piñon é brasileira nascida em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, mas brasileira recente, na medida em que sua família emigrou da Galícia rumo ao Brasil pouco antes de nascer, a fim de “fazer a América”. Na vida e obra da escritora, a Galícia constitui ponto de partida para o desenvolvimento de temas que lhe são caros desde a juventude: o valor da tradição narrativa oral; o Atlântico como oceano de mediação histórico-geográfica entre o Velho e o Novo Mundo; e a emergência do Brasil como esforço ainda não concluído de se “fazer a América”.

N’A República dos Sonhos acompanhamos a história da ascensão social de Madruga, jovem e pobre galego que no começo do século XX, aos treze anos, decide cruzar o oceano escondido dos pais, a fim de realizar a sua ambição na América das infinitas possibilidades: conquistar a terra, crescer e se multiplicar, como Abraão outrora na Palestina.

Madruga é o patriarca ígneo, aquele que pela força e destemor da sua vontade põe os elementos em movimento de modo a lhes dar forma, função e progresso, com isso prosperando e amealhando bens e poder, não sem antes deixar pelo caminho os fracos e ferir e perturbar o curso da vida de muitos com que cruza, a começar pelos membros da sua família.

Conquanto seja assim ambicioso e prático, Madruga carrega consigo a lembrança inolvidável das histórias que lhe contava o avô Xan, as quais lhe encantavam e dignificavam a existência, sob outros aspectos tão pobre e penosa. Os galegos são um povo antigo, cujas origens últimas remontam aos celtas; há tempos vivem decadentes, acossados que são pelos vizinhos, em especial os castelhanos, que os dominam; todavia, são extremamente ciosos de sua história e tradição ancestrais e quase míticas, cujo veículo privilegiado de expressão é a narrativa oral - sempre periclitante, dada a falta de registro estável, contudo forte e persistente -, empenhando-se em subsistir no esforço que um contador faz durante a vida para transmitir o seu legado a um outro. O avô Xan transmitira a Madruga o seu legado; este, contudo, preferira fazer-se homem prático e próspero em terras longínquas, e agora se vê sob a angústia de talvez não encontrar um sucessor, responsabilizando-se, por conseguinte, pelo silenciamento mais grave que pode haver para o seu povo: o da expressão da própria essência.

Os fatos que se estendem da infância de Madruga a sua velhice são dados a conhecer; no entanto, Nélida não o faz de forma linear, cronológica; em verdade, a história começa quando a esposa do protagonista, Eulália, começa a morrer, e se alonga até alcançar os dias subsequentes à consumação dessa morte. Entre uma ponta e outra, no curso de aproximadamente uma semana, acompanhamos a família que acorre para socorrer a moribunda e começa a se digladiar pelos bens que em breve serão partilhados; à medida que o presente da narrativa se desdobra, surgem oportunidades para que os narradores contem um pouco mais sobre cada membro da família, os principais lances de suas relações e os segredos e escândalos que subjazem à convivência familiar e se fazem sentir nas sequelas que legaram aos envolvidos. Trata-se então de uma estrutura narrativa espiralada, que avança sim no tempo, mas não sem revisitar passagens assemelhadas do passado sob as perspectivas novas que surgem. Os narradores são três: Madruga e sua neta Breta, em primeira pessoa; e um narrador tradicional, em terceira pessoa.

A República do Sonhos é uma saga familiar. Nas sagas familiares, conta-se a história de uma família através de várias gerações, ou, em especial, a transição conflituosa de uma geração para outra, sendo seus integrantes expostos detidamente em suas individualidades e interações recíprocas. Ao se valer da estrutura narrativa em espiral, Nélida Piñon põe em evidência a persistência de motivos e impasses no seio da família, presentificando dessa maneira o passado, ao mesmo tempo que chama a atenção para o caráter perene e universal dessas intrigas, como que dizendo que conflitos dessa ordem dizem respeito à trama primeira da existência, antes que a eventos particularizados no tempo e no espaço. Sob esse ponto de vista, as personagens e os acontecimentos n’A República dos Sonhos apontam para fora, para o que há de característico no humano em suas expressões mais frequentes.

Os filhos de Madruga são quatro: Miguel; o Bento galego; o segundo Bento, brasileiro; e, por fim, Tobias, o caçula da família. 

Miguel é o filho predileto da mãe e o amante preferencial das mulheres que encontra na vida. Nele, pulsa a força da energia sexual, do sexo úmido, premido por odores fortes, descarnado e humano, de que fala Nélida Piñon com expressões enfáticas e desconcertantes. Muito embora a energia sexual aponte aqui para suas potências de criação e impulso de vida, seus efeitos sobre Miguel só fazem desnorteá-lo, tornando-o escravo das paixões e vítima da infelicidade conjugal que se segue: é como se a escritora registrasse que as forças naturais que municiam a criação ordenada estão à mão, entretanto são vorazes e podem subjugar os que tentam manipulá-las. Miguel é também o símbolo da sexualidade masculina desabrida e autorizada, em oposição exata à sexualidade feminina encoberta e proibida, de que é símbolo Esperança.

O primeiro Bento, filho que Madruga decide nascerá na Galícia, representa o fracasso do patriarca em dominar os laços míticos e ancestrais que o ligam à terra natal e, sobretudo, ao avô Xan, que traíra. Bento morre na volta ao Brasil, sendo sepultado no Atlântico, e a partir de então Madruga é obrigado a se persuadir de que, ao optar pelo Novo Mundo, certas renúncias se tornaram incontornáveis.

O segundo Bento, que nasce no Brasil como os demais filhos, é o menino aplicado e correto que deseja obter da família o afeto e a predileção que não lhe são dados gratuitamente. Torna-se um competente administrador das empresas do pai, sem dúvida respeitado pelo sucesso que atinge; não é porém um predileto nem do pai nem da mãe, tampouco de algum dos irmãos, o que só lhe acentua no comportamento o cálculo para agradar, cálculo este, contudo, que acaba distanciando-o ainda mais dos familiares, por conta daquilo que tem de artificial e que se soma à já existente ausência de afeto espontâneo, que tanto lhe causa desgosto.

Tobias, por fim, é o antagonista do pai. Não ambiciona “fazer a América”, tampouco é escravo do impulso de vida sexual que pauta a vida de Miguel; muito menos se destaca na administração de qualquer coisa, a começar pela própria vida. Tobias está atento às mazelas sociais, aos perdedores, àqueles que, no caminho de conquista de Madruga e de outros como ele, ficaram para trás. Ele é o lembrete constante ao pai do que pode haver de vacuidade e equívoco no sucesso cujo conquista guiara sua vida.

Paralelo ao núcleo masculino da família, encontra-se o núcleo feminino, cujos percalços trazem carga dramática ainda mais explosiva, dadas as fragilidades historicamente infligidas a mulher.

Tal como Madruga, a matriarca Eulália é galega. O marido quisera conquistar a América, mas não abria mão de ter uma conterrânea ao seu lado; por isso lançou-se em expedição triunfal à terra de origem com esse propósito, e lá chegando decidiu-se pela moça que se apresentava como de mais difícil conquista: a filha de Dom Miguel, representante eminente de tradicional e decadente família galega, o qual, não obstante a decadência, fiava-se no orgulho e na capacidade de perpetuar a tradição oral para conservar seu status junto aos pares. Eulália desde sempre viveu mais no céu do que na terra: como que em fuga das adversidades terrenas ínsitas à condição feminina, aferrou-se a Deus e com ele verdadeiramente se casou, mantendo-se passiva diante do marido e, ao longo da vida, no trato com os filhos, empregados e amigos. Muito embora tão passiva, é certo que Eulália comunga em certa medida da ambição e do destemor do futuro esposo; afinal, poderia ter dito não à sua proposta de casamento, o pai com certeza a teria apoiado; no entanto diz sim, e concorda em, a seu modo, “fazer a América”, multiplicar-se em terras distantes e desconhecidas. Todavia, os exatos contornos dessa vontade inusitada restam ignorados, pois Eulália não é só passiva, mas ativa junto a Deus na empresa de se distanciar dos homens e se fazer ignorada em sua intimidade.

Esperança, a primogênita, é força ígnea assemelhada à Madruga; o problema é que nasceu mulher, e como tal, é-lhe vedado desdobrar-se em conquista e criação de mundos. Desde o início da narrativa, sua figura paira como um estigma familiar, um tabu: sabemos que era destemida, que falecera e que, em algum momento, rompera relações com o pai. Não sabemos, no entanto, os exatos contornos desses fatos, ainda que pressintamos que sejam a chave para explicar o presente que se narra. Quando afinal temos acesso ao quadro completo, do alto do ano de 2020, é impossível não pasmar com a desmedida das consequências cominadas aos atos de Esperança pela simples razão de ser mulher: talvez aí percebamos que, ainda que pouco e de forma periclitante, sem dúvida avançamos alguns passos na direção correta.

Se o segundo Bento é o filho que se esforça para ser querido e que, apesar de não o conseguir, ao menos não é desprezado e tem a presença aceita sem maiores problemas no cotidiano da família, Antônia, a filha mais nova, é aquela que na família irremediavelmente sobra, jamais conseguindo superar essa limitação: nunca ninguém a teve como favorita; a irmã lhe ofuscava com sua personalidade solar; seu casamento de conveniência com um filho da tradicional elite brasileira, Luiz Filho, homem de excessiva ambição, só faz aumentar as antipatias dos seus familiares. De insucesso em insucesso, Antônia vai se fazendo deslocada, amarga e infeliz, embrenhando-se num círculo vicioso do qual não consegue sair. Chama a atenção a dinâmica cruel que os afetos familiares podem assumir, na medida em que simpatias e antipatias são distribuídas, sem que a distribuição, no entanto, garanta que a cada qual seja atribuído um justo quinhão: a Antônia nada sobrou, e não por culpa sua. Só resta ao leitor lamentar a fatalidade existencial de que ela é vítima, e reconhecer, em tantos outros ao seu redor, o mesmo desfecho de vida.

Madruga conquista a América e se multiplica na terra prometida, como Abraão antes dele; entretanto, os que ficam para trás, seja porque não desejam, seja porque não dispõem de meios para abrir as portas de tamanha prosperidade material, insinuam-se em sua vida e frequentam a mansão no Leblon que é símbolo da sua glória.

Venâncio é o jovem espanhol que Madruga logo conhece ao embarcar na Espanha rumo ao Brasil e que jamais deixa sair de perto de si. Não ostenta a mesma ambição que Madruga; muito pelo contrário, prefere pisar em solo brasileiro com o pé esquerdo, interessando-se antes pela história, as injustiças do mundo e as coisas do espírito. Recusa-se a revelar sua intimidade e origens à Madruga, como que preservando um núcleo mínimo de independência e dignidade diante das investidas do amigo. Flerta com a loucura, mas não sucumbe a ela. Tudo leva à convicção de que Madruga não teria motivos para conservar uma tal amizade; mas a verdade é que Madruga a conserva, inclusive resignando-se estoicamente em face de negligências e recusas do amigo. De certa forma, Venâncio é o elo que une Madruga àquela espécie de patrimônio espiritual do avô Xan que não pode ser convertida em pecúnia; talvez, a amizade constitua ato de reconhecimento e expiação de Madruga pelas faltas cometidas ao longo da sua jornada.

De outra parte, Odete é a representante dos pobres e despossuídos do Novo Mundo, dos não contemplados por projetos de conquista e expansão como os de Madruga e seus convivas. Negra, pobre, empregada doméstica, dedica a vida a servir a casa onde trabalha e, especialmente, a patroa Eulália, a quem se devota tão sincera e abnegadamente a ponto de não se poder evitar divisar na relação uma tensão homoerótica. Sobre seu entorno doméstico e raízes familiares paira a nuvem do desconhecimento, desconhecimento que também é marca dos seus ascendentes escravizados, e índice da fragmentação pessoal e social que os envolve. Tão invisível é Odete, que Madruga não a enxerga verdadeiramente, tampouco se detém a pensar nela com vagar. Por não enxergar Odete, mas conseguir enxergar Venâncio, é possível avançar a hipótese de que, aos olhos de Madruga, a interseção entre exclusão social e condição feminina faz de sua empregada a última dos excluídos.

Madruga e Eulália; os filhos; o ambicioso marido de Antônia, Luiz Filho; Venâncio e Odete; estas são as personagens que desenvolvem a trama e correspondem ao seu foco. Sabemos que há muitos netos, e que acorrem à mansão do patriarca a fim de acompanhar as últimas horas da avó Eulália; nenhum deles é nomeado, com exceção de Breta, a neta filha da finada Esperança e favorita de Madruga - entre filhos e netos. Madruga, que vira sua vida passar sem chances de transmitir a herança oral do avô Xan, fracassando aí, muito embora não seja um homem de fracassos, finalmente encontra na neta escritora alguém a quem possa confiar seu legado espiritual. Tanto é assim que Breta é conarradora do próprio livro, no que demonstra não só conservar e transmitir a antiga tradição galega, legada pelo avô, como também expandi-la para incorporar os desdobramentos recentes da vida daquela gente no solo novo e fértil que é o do Brasil. O avô Xan encontra em Madruga, seu neto, e não em Ceferino, seu filho, o herdeiro de sua tradição literária; Madruga quase falha no seu dever de transmissão, não encontrando nos filhos um sucessor; vai encontrá-lo na neta, uma geração adiante. Nélida Piñon parece sugerir com esse padrão que a memória e a criação literária, oral ou escrita, são sempre periclitantes, em vias de desaparecer, salvando-se apenas no último instante, num gesto extremo e romanesco.

Na sequência da espiral, à medida que acompanhamos o desenrolar da vida de Madruga e sua família, também travamos conhecimento com as vicissitudes históricas que deram o compasso dessas vidas: as guerras mundiais, a ascensão e queda de Getúlio Vargas, a Guerra Civil Espanhola, a Ditadura Militar brasileira, todos são eventos pelos quais as personagens não passam incólumes.

A leitura d’A República dos Sonhos se desenvolve com a expectativa por descobrirmos mais da vida interior e do passado das personagens, da natureza e dos percalços das suas interações, bem como com a certeza de que, ao acompanharmos esses desdobramentos particularizados, acessaremos igualmente o conhecimento do que está no âmago da humanidade, não importando tempo ou lugar. Não se trata do tipo de romance de que esperamos reviravoltas e desfechos espetaculares. Todavia, conforme a leitura avança, qual não é a surpresa quando começamos a nos deparar com a revelação de segredos e a evolução de certas linhas de ação que surpreendem enormemente. Não são revelações ou desenvolvimentos inverossímeis e postiços, muito pelo contrário; o espanto advém justamente de que não os esperávamos, mas quando surgem, mostram-se como lances inevitáveis que deveríamos ter antecipado em alguma medida. Os passados de Esperança e Venâncio, sobretudo, são pródigos em causar esse tipo de impressão.

Outro desdobramento surpreendente é a leitura psicológica - quiçá psicanalítica - proposta ao final do livro, quando Eulália decide entregar a cada filho uma caixa na qual conservava pertences e lembranças de cada um. Esse gesto simples causa em sua descendência extrema comoção, de modo que cada um reagirá de um modo particular e extremado diante desse legado. As potências que essas caixas de lembranças encerram; as opções que cada um toma, de abrir ou não a caixa, agora ou nunca; e as reações dos que as abrem; são circunstâncias que lançam luz nova sobre a personalidade das personagens, convidando o leitor a revisitar o que aprendera sobre elas para as perscrutar desse jeito novo.

Por fim, o último e eminente desdobramento que surpreende o leitor é a conotação metalinguística que a narrativa adquire à medida que se aproxima do final, em que o legado oral passa efetivamente de Madruga para Breta. O que Breta decide fazer com o que é legado, e o que nos revela da sua própria narração d’A República dos Sonhos, sugerem uma visão de mundo que parece pertencer à própria escritora Nélida Piñon e justificar sua escrita, e que diz respeito aos expedientes que devem ser tomados para perpetuar e atualizar a tradição recebida.

A República dos Sonhos fala da vida e do que há nela de literário. Saga familiar que é, conta a vinda de um povo antigo e tradicional para uma terra nova, em que a história mais é feita do que herdada. O que Nélida Piñon faz é mediar essa travessia, tal qual o Atlântico antes dela, ciente de que não é possível esquecer, e convicta de que não se pode perder de vista o novo, colocando-se de costas viradas. Nélida Piñon homenageia a Galícia porque está decidida a seguir em frente no Brasil. Com esse gesto convida seus concidadãos brasileiros - os quais, à semelhança de rios, desaguaram juntos nesta terra de reunião -, a resgatarem suas memórias ancestrais a fim de trazê-las orgulhosamente ao novo ajuntamento, dando a este cores e contornos únicos.

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