Jorge Luis Borges, um escritor na periferia, de Beatriz Sarlo


Jorge Luis Borges, um escritor na periferia, de Beatriz Sarlo
Ao ser convidada para ministrar uma série de conferências sobre Jorge Luis Borges na Universidade de Cambridge, nos anos 1990, a intelectual argentina Beatriz Sarlo se viu sob a contingência de ser uma compatriota do escritor num espaço que era alheio a ambos, mas no qual este era lido em função de sua universalidade evidente, em vez de algum elemento tipicamente nacional que pudesse apresentar. Sem negar que a obra de Borges de fato se presta a esse tipo de leitura, Sarlo propôs uma investigação de suas relações com o pano de fundo local a fim de demonstrar que há ali uma real influência das questões nacionais e que são elas determinantes para as formulações estéticas que depois contribuirão para caracterizar a própria universalidade: a diferença em relação a outros escritores - e o motivo do tom nacional não ser de imediato reconhecido - vem de que em Borges não há propriamente a representação de elementos nacionais para discutir a nacionalidade, mas antes a formulação de uma pergunta: "como é possível escrever literatura numa nação culturalmente periférica?".

Borges percebe de imediato que a literatura europeia não pode ser vivida por um escritor latino-americano como sua natureza original; por outro lado, é impossível renunciar ao peso da história do país, que se insinua por toda parte, a começar pela história familiar. Essas duas constatações impõem um dilema: como lidar com a herança europeia a partir desse outro lugar e sem cair na armadilha da literatura de cor local e tom pitoresco?

Um dos primeiros passos do escritor para superar esse impasse é dado com o interesse que nele nasce ao retornar da Europa no início dos anos 1920. A Argentina passava por um intenso processo de modernização, movido em grande parte pela chegada maciça de imigrantes; o mundo criollo tão conhecido de Borges e parte indissociável de sua herança pessoal estava ameaçado: num país em que a tradição europeia não era um elemento orgânico, o pouco de tradição que havia começava a escapar das mãos. Buenos Aires se transformava rapidamente, e pelas ruas da cidades transitavam diferentes interesses, de modo que a literatura da época privilegiava a cidade como o local do discurso onde é travada a disputa em torno da identidade nacional. Nesse contexto, Borges escolhe a região das orillas - ou arrabaldes, numa tradução livre -, como cenário privilegiado de suas narrativas, espaço que não era exatamente a região heróica e rural dos pampas, ligada a vários elementos da incipiente identidade nacional e submetida à ameaça de esquecimento, tampouco o centro da cidade cada vez mais moderna - como o fizera Roberto Arlt -, que tendia a ser identificado pura e simplesmente com a Europa. As orillas são a periferia da cidade, a margem onde o urbano se mistura e se confunde com o rural, quase que constituindo uma terceira coisa; nas palavras de Sarlo:

Nas orillas, a linha do limite se adensa e, ao mesmo tempo, se mostra porosa, porque esse cenário está pontilhado pelos terrenos baldios e pelos muros com nichos, pela transparência das grades de ferro e das cercas-vivas, por balaustradas e sacadas, por fachadas que retrocedem para trás das figueiras e pátios que abrem o centro do quarteirão para o céu.

[...]

Nas orillas, a cidade ainda está por se fazer. Borges escreve um mito para uma Buenos Aires que, a seu ver, precisava de um. A partir de uma memória que quase não é sua, opõe à cidade moderna essa cidade estética sem centro, construída inteiramente sobre a matriz da margem. (p. 49/50)

Ao escolher um lugar imaginário privilegiado, Borges avança sua teoria particular da literatura nacional, segundo a qual a literatura universal é a tradição da literatura argentina; os marginais têm uma liberdade diante da tradição que os europeus jamais poderão ter. Na região limítrofe e porosa das orillas, Borges pode transitar pela literatura do mundo inteiro, pela literatura argentina e, dentro desta, pelos temas tipicamente nacionais, sem se deixar reduzir a eles ou procurar uma síntese entre os elementos díspares: é justamente da tensão permanente entre os elementos que a literatura extrai sua força.

Desse modo, a escolha de um lugar geográfico, depois transformada numa estratégia de mediação de culturas, num terceiro momento resulta na opção propriamente estética por uma literatura que desconfia da originalidade, valendo-se, ao contrário, do recorte, da reformulação, da paráfrase, enfim, de todos os instrumentos que partem de um texto alheio para criar um outro texto pela via da combinação. Tem-se aqui a estética da leitura que será um elemento tão característico da obra de Borges: mais do que um texto original, sempre refém dos que lhe precederam, é viável produzir uma leitura original, sendo as circunstâncias em que se lê determinantes do sentido da escrita: nesse sentido, o conto Pierre Menard, autor de Quixote é paradigmático. Se mais vale a leitura do que a originalidade da escrita, é possível afirmar que a subjetividade não é algo que se exprime, pressupondo uma síntese pronta e interior, mas sim algo que se constrói.

Sendo um escritor latino-americano que transita pelas fronteiras entre culturas sem encontrar no âmbito imediato uma identidade nacional pronta, antes a disputa em torno de sua formação, escrever literatura realista, para Borges, torna-se uma impossibilidade. O escritor argentino já de partida desconfia da pretensão referencial desse tipo de literatura independentemente do contexto, considerando que pouco contribui para a organicidade da narrativa; num contexto instável como o argentino, a referencialidade seria ainda mais falhada, caindo na tentação da síntese daquilo que não existe como objeto acabado.

Vêm daí o conto e a literatura fantástica: o conto, porque nele a trama predomina sobre a construção da verossimilhança, o que não acontece no romance; e a literatura fantástica, porque é capaz de construir um mundo coeso com base na potência da imaginação, sem cair nas armadilhas da referencialidade. A literatura fantástica em Borges se relaciona com o mundo na medida em que estabelece com ele a contradição e a divergência, ou seja, permite que este se veja por aquilo que não é, entretanto não entrega uma imagem acabada daquilo que seria, dado que por certo essa imagem seria falsa.

Sempre segundo Sarlo, Borges se relaciona a um só tempo com a instabilidade da identidade nacional e a instabilidade política do país ao privilegiar o conto e a literatura fantástica; mas não é só: também nas especulações sobre o caráter arbitrário das convenções o escritor estabelece diálogo com ambos os temas. É recorrente em sua obra a relativização de convenções como a linguagem, assim como a formulação de experimentos em que determinados pressupostos arbitrários são dados e depois acompanhados em seus desdobramentos extremos: há aí a séria desconfiança quanto aos critérios pretensamente racionais de organização da sociedade, além da constatação de que toda ordem se rege mais por um ato de força que a impõe do que por sua validade intrínseca; se é assim, a proposição de uma literatura nacional que seja resultado de uma síntese inevitavelmente encerrará dentro de si a arbitrariedade da escolha, sendo preferível a tensão permanente das fronteiras, que não desfigura a complexidade, além de garantir a liberdade.

Vê-se com Beatriz Sarlo que a universalidade de Borges é resultado direto da pergunta que este precisou responder acerca da identidade nacional. O resultado, contudo, não vem da negação da nacionalidade em favor de uma adesão ao universal; a genialidade de Borges está em que, ao se perguntar sobre o seu lugar no mundo, descobriu qualidades concernentes ao próprio mundo, de modo que sua resposta nacional é concomitantemente uma revelação do universal. O que há de latino-americano nisso é que dificilmente um europeu conseguiria descobrir esse outro lado do universal a partir do lugar em que faz a leitura do mundo; em outras palavras, a latinidade de Borges corresponde ao lugar determinante a partir do qual escreve e que lhe permite ver um outro hemisfério do universal, e não à negação do globo em prol de uma possível especificidade do hemisfério.

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** essa é a edição na qual me baseei para escrever este texto e que é citada.

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