Oréstia, de Ésquilo - Agamêmnon, Coéforas e Eumênides

Agamêmnon, Coéforas e Eumênides
A Oréstia, ciclo de tragédias escritas por Ésquilo que tem início com Agamêmnon, passa por Coéforas e termina com as Eumênides ocupa em razão do seu enredo uma posição central dentro da literatura e do mito gregos, na medida em que a Dinastia dos Atreus, cuja história conta, está implicada entre os motivos próximos da Guerra de Tróia, o que significa que desempenha protagonismo na Ilíada, de Homero, além de se desdobrar em outras peças nas quais são personagens destacadas Ifigênia, Electra e Orestes; também fornece o relato da consolidação dos deuses olímpicos diante dos homens e dos deuses antigos, feito cuja representação máxima é a transformação das Fúrias nas Benevolentes cultuadas aos pés da areópago.

Agamêmnon tem início com uma cena emocionante: uma sentinela fora colocada em vigília para recepcionar um sinal que indicasse o fim da Guerra de Tróia. O local é Argos, cidade cujo rei, Agamêmnon, saiu há vários anos liderando os gregos numa expedição de guerra destinada a vingar a honra do rei Menelau, seu irmão, cuja esposa, Helena, fora raptada por Páris, príncipe de Tróia, num gesto que violara gravemente as regras sagradas da hospitalidade. Reina em seu lugar a esposa Clitemnestra, justamente quem concebera a estratégia de comunicação que possibilitaria saber quando chegasse a um desfecho aquela guerra que parecia infindável: sinais de fogo foram armados em pontos íngremes da geografia helênica, desde Tróia até Argos, acompanhados pela instrução de serem acesos quando sobreviesse a notícia. Na cena que inaugura a tragédia, portanto, é a sentinela já desanimada que acompanhamos no preciso momento em que as fogueiras são acesas e a boa nova tão esperada é finalmente transmitida. Em breve regressará o rei, para encontrar, no entanto, uma situação que muitos desconfiam constitua a emboscada de uma traição. Ifigênia, a filha de Clitemnestra, precisou ser sacrificada pelo pai a fim de conseguir as boas graças da deusa Ártemis, que assim permitiu ventos favoráveis às naus gregas em sua trajetória rumo a Tróia. A mãe da vítima tomou para si a execução do imperativo de justiça que determinava que o derramamento de sangue no seio de uma família fosse rigorosamente vingado; logo, a expectativa pela chegada do marido é a expectativa pela consumação de um plano funesto há muito tempo meditado; ao seu lado, está o amante Egisto, primo de Agamêmnon e ele próprio imbuído do desejo de vingar neste o assassinato do pai perpertrado pelo genitor do rei de Argos. A imagem é a da repetição de crimes passados sob o pretexto de sua vingança, num movimento que depois igualmente clamará por quem o vingue. A peça segue relatando o contexto humano e cósmico no qual se insere essa trama ruinosa até que Agamêmnon finalmente chega a Argos para ser morto pelo casal que o esperava.

Se na primeira peça do ciclo se trata sobretudo da mãe que vinga a morte da filha, na peça que a continua  - Coéforas -, há o filho que vinga a morte do pai, para isso derramando o sangue da própria mãe. Muito embora tivesse sido motivada pela desdita da jovem Ifigênia, a opinião pública representada pelo coro não admite em absoluto que um guerreiro valoroso como Agamêmnon tenha sido assassinado pela esposa e seu amante depois de tantos anos longe de casa, numa emboscada armada justamente quando acabara de regressar ao lar. Tampouco os deuses se conformam com esse estado de coisas, motivo pelo qual Apolo, através do oráculo, inspira Orestes a vingar o sangue derramado, saindo do exílio em que se encontrava para depois de muitos anos regressar a Argos. Orestes retorna sob um disfarce; a princípio é descoberto pela irmã Electra, do mesmo modo desconsolada com o que acontecera; disfarçado, arma um plano que o permite enganar Clitemnestra e consumar a vingança sobre o casal.

A soma dos atos cometidos nas peças anteriores conduz homens e deuses a um impasse nas Eumênides. Não obstante tenha obedecido a um deus ao perpetrar o matricídio, outras deusas divergentes de Apolo exigem a vingança da morte de Clitemnestra. Acossado, Orestes vai a Delfos buscar garantias junto ao deus que o guiou; no seu encalço seguem as Fúrias, divindades anteriores aos deuses olímpicos que não descansarão enquanto não alcançarem o rapaz. De Delfos as personagens são conduzidas a Atenas, cuja deusa padroeira será incumbida de resolver o caso. Diversamente do que faz Apolo, Atena não desconsidera a pretensão da Fúrias, ainda que não possa simplesmente concordar com elas; por isso estabelece um tribunal, a ser integrado pelos cidadãos da cidade: doravante, incumbirá a eles solucionar semelhantes litígios, sendo que o voto da deusa desempatará o resultado em benefício de quem for acusado. O julgamento se faz, Orestes é absolvido em virtude do voto de Atena e assim a vingança demandada pelas Fúrias resta aplacada. Todavia, as antigas deusas não abdicarão do atavismo de sua missão se algo mais não lhes for ofertado; ciente disso, Atena propõe às Fúrias um culto permanente aos pés do areópago, em troca de que a deusas não mais se batam por vinganças cegas, entretanto sendo respeitadas e temidas quanto àquilo de bom que incutem e sem o qual a sociedade não pode passar. A transação é aceita e ciclos de vingança como o representado na Oréstia são dali em diante evitados.

À medida que a Oréstia avança, cresce o desconforto com o acúmulo de decisões divinas mais e mais contraditórias e injustificáveis. De partida, é sobre a legitimidade da Guerra de Tróia que muitas dúvidas pairam. Seria a violação do dever de hospitalidade por Páris razão forte o suficiente para justificar a morte de tantos gregos? Seria a exigência do sacrifício de Ifigênia condição aceitável para a consumação de uma guerra cuja iniciativa fora do próprio deus supremo? Uma vez morta Ifigênia, como lidar com a lei igualmente divina que requer a justa retribuição ao ato e então se estende da morte da jovem à morte de Agamêmnon, da de Agamêmnon à de Clitemnestra e, por fim, à de Orestes e à de quem vier assassiná-lo, sucessivamente, num ciclo sem fim? Leis divinas assim aplicadas não acabariam por levar a sociedade ao completo caos, no que seria o exato oposto da paz que decorre da justiça?

O imbróglio é fruto da ascensão dos deuses olímpicos que ainda não fora consumada. Permaneciam livres forças originárias da ordem antiga, carecedoras de ser acomodadas, dado que suprimi-las não seria possível. A solução encontrada por Atena representa o momento da acomodação, quando o temor que as Fúrias incutem é preservado com vistas a determinadas finalidades, ao passo que o atavismo insolúvel de sua conduta é dissolvido.

A consumação da nova ordem olímpica é também a consumação de um regime patriarcal. As Fúrias provinham de uma ordem marcadamente feminina, cujas características, para a mente grega clássica, sempre estiveram associadas ao caráter indômito e misterioso das forças naturais. O mesmo Apolo que aqui defende Orestes das Fúrias, em outra ocasião tomou o lugar da serpente Píton em Delfos, sendo obrigado, no entanto, a preservar uma parcela das forças que esta mobilizava instituindo o oráculo que o tornaria célebre, o qual sem dúvidas era tributário de uma concepção de mundo marcadamente matriarcal. A apatia que nas peças vai se avolumando em torno da morte de Ifigênia, até chegar ao ponto de ser simplesmente esquecida, justaposta à diferença de importância que se empresta à morte de Agamêmnon em detrimento da de Clitemnestra, sinaliza que o mundo novo que se instaura não é um mundo que preza a mulher. Ao final, a própria deusa Atena verbaliza expressamente a diferente valoração.

Considerando que na literatura e no mito gregos os homens agem em paralelo à vontade dos deuses, e que a ação assim conduzida tende à reprodução das intrigas que alimentam as histórias, a Oréstia se insere nesse contexto como um passo significativo de distanciamento dessa dinâmica, abafando-lhe a fertilidade com o sem-sobressalto dos julgamentos de um tribunal humano equânime. De um impasse resolvido por um colegiado, não se espera que dê azo a mais intrigas; é como se, na Oréstia, houvesse não apenas a consumação da ordem olímpica, como também a instauração de uma ordem propriamente humana, da qual os deuses se afastam progressivamente. Mito e literatura perdem em novidade, cedendo lugar aos ditames da razão e aos postulados da filosofia. Talvez a desnecessidade da intervenção ostensiva dos deuses nos assuntos dos homens seja não o sinal do fracasso da ordem que instauraram, mas sim a prova de que esta agora se encontra em perfeito funcionamento.

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