O Aleph, de Jorge Luis Borges - análise de O Imortal e O Morto

O Imortal e O Morto, de Borges
Os dois contos que abrem o livro O Aleph, de Jorge Luis Borges, a partir dos títulos estabelecem entre si um paralelismo ou relação de complementaridade, que vai além e se desdobra no que é contado e naquilo que cada um encerra da personalidade do escritor. Em O Imortal e O Morto estão reunidos os principais vetores da literatura borgeana: de um lado, a realidade que é feita e lida a partir dos livros, a erudição amplíssima e os questionamentos de cunho metafísico; de outro, o passado heróico da Argentina, a vida de aventuras que se expande dos arrabaldes de Buenos Aires em direção aos pampas, os atos de bravura dos "gauchos", duelos e emboscadas; um e outro heranças de família, cujos integrantes, ora intelectuais ora indômitos conquistadores, colonizaram o país e se bateram nas lutas da fundação. A integração entre ambos os polos ocupou Borges no curso de sua obra, de modo que a sequência dos contos não é casual, mas antes uma metonímia do que virá.

O Imortal

O Imortal é um conto extenso em cinco partes, além de um prólogo e um pós-escrito. Logo no início, Borges submete o leitor a uma miríade de referências circunstanciais que ocupam o entorno da descoberta de um manuscrito cujas páginas serão apresentadas a seguir. O escritor faz crer que, por força de tantos detalhes, haverá uma maior disposição a aceitar os fatos extraordinários que serão apresentados. E são sobremaneira extraordinários os lances da vida do tribuno de uma legião romana no Egito chamado Marco Flamínio Rufo. 

Depois de uma extenuante campanha naquelas terras, o protagonista se vê abatido e cercado por companheiros que padecem de feitiços ou doenças; nesse momento, surge um homem ferido que vem do extremo oriente, de um lugar situado à direita do rio Ganges, em busca de um outro rio no extremo ocidente do mundo, cujas águas lavam da mortalidade e em cuja margem se ergue a Cidade dos Imortais. O viajante não resiste e morre, no entanto bastou o que dissera para inocular no tribuno a vontade e iniciativa de encontrar esse lugar em que a imortalidade está disponível. Após investigações preliminares inconclusivas, uma expedição por ele comandada sai à sua procura, cruzando para tanto terras desérticas e hostis e encontrando povos que são progressivamente bárbaros, selvagens e monstruosos; o grupo vai se desfazendo em desordem; Marco se vê premido a fugir para não ser enredado numa emboscada; por fim, sozinho e escaldado pelo calor, acaba despertando num nicho escavado na montanha, próxima à qual há ainda um riacho atulhado de escombros, buracos de onde saem trogloditas despidos e de pele cinza e a Cidade dos Imortais. 

O movimento em direção aos lugares ambicionados não se dá de pronto; quando finalmente avança, é seguido por uns poucos trogloditas. Chegando à noite diante dos muros de pedra da meseta sobre a qual se ergue a cidade, Marco se vê obrigado a descer por uma caverna para tentar entrar; esse caminho o leva por subterrâneos sempre mais escuros e labirínticos até que consegue - agora sozinho - chegar ao seu interior. A cidade que se apresenta é desconcertante; na arquitetura, forma e função estão dissociadas; a conclusão imperiosa é de que foi feita por deuses, deuses que morreram e eram loucos; permanecer seria insuportável. Quando finalmente regressa à borda externa da meseta, Marco encontra um único troglodita que permanecera no seu aguardo, o que o leva a chamá-lo de Argos, cão fiel do herói Ulisses da Odisseia. 

A discreta, porém inequívoca inserção de Homero será a causa do despertar de Argos, com quem Marco passa a conviver junto com outros trogloditas; a princípio infenso à palavra, depois de uma chuva Argos fala e revela que na verdade foi o próprio Homero no passado. Os trogloditas eram imortais que construíram a cidade; depois de um tempo, botaram abaixo aquela que fora a cidade original e mítica e a partir das ruínas ergueram os edifícios de estranha arquitetura que Marco visitara; o movimento acompanhou o desencanto com a inutilidade de qualquer empresa sob a perspectiva da imortalidade - num tempo sem fim, uma coisa acaba anulando a outra, tudo se equivale e qualquer atitude se apresenta desprovida de propósito. O mesmo movimento os levara a um estado meditativo de mais puro pensamento, o que explica terem demorado tanto para recobrar as palavras e se dirigir a Marco. 

Na esteira de tamanhas descobertas, o protagonista retorna ao ponto de partida, passando então a viver ao longo dos séculos as mais variadas vidas até que, enfim, banha-se por acaso num outro rio, cujas águas se provam restauradoras da mortalidade - num tempo infinito, nada mais natural do que haver uma contraparte ao rio que torna os homens imortais. Aquele que seria Marco, recobrada a mortalidade, vive um pouco mais e morre. A essa altura, o leitor é levado a entender como manuscrito por ele escrito foi parar nas mãos de um antiquário, depois nas de uma princesa e por fim nas do narrador da história. Uma nota de rodapé e o pós-escrito levam a crer que Marco e o antiquário eram uma mesma pessoa, assim como o padecente do início, o troglodita Argos e Homero.

A narrativa que Borges constrói aqui tem o poder de conduzir o leitor a tempos imemoriais que, não obstante o prefixo, são os tempos distantes da antiguidade havida ao redor do Mar Mediterrâneo. O deserto cujas areias se misturam à cor da lua; o calor que confunde os sentidos, entorpecendo o pensamento; a penetração do deserto seguida do encontro de homens sempre mais monstruosos; todos são elementos que compõem uma atmosfera feita de brumas que são a pátina do tempo. Às brumas corresponde o sonho e o onírico; a arquitetura divorciada de sua essência funcional erguida na Cidade dos Imortais é uma imagem eficiente das associações subversivas e livres mobilizadas durante o sono.

A atmosfera que conduz no tempo ao passado e nos sentidos, ao onírico, através do mesmo movimento leva ao infinito da imortalidade. A indistinção entre o que está em cima e o que está embaixo, os quadros brumosos retidos por olhos mais e mais cansados e a inutilidade das formas são aspectos do infinito temporal que precedem na narrativa a exposição propriamente especulativa do que seja este. Quando a cidade é visitada pelo tribuno romano e Argos se anuncia Homero, o conto passa a cuidar explicitamente do assunto a que se propõe. A imortalidade é um espaço onde tudo pode acontecer; o que se faz, é feito visando à determinada finalidade; é próprio da finalidade a expectativa de que perdure no tempo; se o tempo é infinito e tudo é possível, chegará um momento em que outra causa levará à consecução de uma finalidade oposta, que anula a primeira e frustra seu sentido de permanência; se a permanência, que é ínsita à finalidade e, portanto, à ação, se mostra impossível, então por que agir? O desdobramento desse raciocínio em suas consequências últimas conduziu os imortais à desistência da moralidade (afinal, méritos e deméritos se anulam mutuamente), depois à inação e, conclusivamente, à abdicação da palavra, na medida em que o verbo transita finalisticamente de um sujeito a um objeto, o que é inútil porque precário. Restou um estado meditativo feito de pensamento extático.

A imortalidade vista como o equilíbrio imóvel de fins contrapostos, posto que terrificante, traz em si o consolo de uma visão de mundo total e coesa; Borges, no entanto, não permite que o leitor fique por muito tempo confortável na posse desse conceito, pois logo lhe apresenta uma contradição de raiz. Se no tempo infinito são forçosas as equivalências contrapostas que detêm umas às outras, é preciso também que no seio da imortalidade se esconda a mortalidade como sua oposta necessária. De que modo convivem imortalidade e mortalidade? Se imortal, de que modo também mortal, já que o ser imortal pressupõe o caráter irrevogável da imortalidade que o constitui? Se mortal, como igualmente imortal, se o ser mortal pressupõe o caráter precário da mortalidade que o distingue? Estas são perplexidades que o escritor propicia a fim de que o leitor parta delas para elaborar o conteúdo fugidio dessas duas possibilidades de vida.

Nesse impasse e em outros, o conto prova ser verdadeira obra de arte e não mero pretexto para uma inusitada especulação cerebral de conceitos não necessariamente literários. O conto não veicula apenas concepções sobre a imortalidade; ao fazê-lo, emprega imagens, sequências e narrativas que ultrapassam as  concepções, por si sós incapazes de abarcar a complexidade que apontam. A literatura de ficção se mostra necessária ao discurso pretendido. A imagem configurada é superior às palavras nas quais se decanta provisoriamente.

Estabelecidas assim as bases da realidade narrada, torna-se difícil - e, por que não dizer, inútil - precisar se Marco Flamínio Rufo é o antiquário Cartaphilus, que por sua vez pode ser o oriental que padece no Egito e o troglodita e Homero e muitos outros e ninguém; tampouco faz sentido averiguar quem exatamente redigiu o manuscrito, se é apócrifo, se contém interpolações. Na fronteira derradeira do tempo, que para Borges parece ser o livro, todos os escritores são a humanidade que escreve e todos os leitores são a humanidade que lê. Homero, como símbolo da fama literária vocacionada à imortalidade, avança no tempo através de cada leitor que o lê e depois escreve e depois é lido. Com a tradição literária, Borges aponta uma fuga possível do que há de fundamentalmente contraditório no ser imortal.

O Morto

É bastante distinta a atmosfera que o leitor encontra em O Morto, embora não menos consequente em termos metafísicos, o que testemunha a favor do sucesso de Borges ao integrar as vertentes principais do seu projeto literário. Enquanto O Imortal é um conto claramente distanciado no tempo e no espaço, sendo por isso capaz de transportar o leitor para longe do território em que transita a fim de assim explorar com maior acuidade os fundamentos últimos da vida humana, O Morto sai da conhecida periferia de Buenos Aires em direção à terra mítica, entretanto próxima dos pampas.

As temporadas no exterior e o cotidiano sobretudo doméstico nos anos de formação fizeram com que Borges concebesse uma ideia particular do "locus" sentimental constituído por Buenos Aires. O intenso fluxo de imigrantes no início do século XX ameaçava descaracterizar a cidade conhecida pelo escritor nos primeiros anos; nesse contexto, os arrabaldes que mediavam a modernidade do centro e a vastidão dos pampas ocupavam uma posição especial entre os afetos do escritor. O fluxo imigratório também ameaçava alterar a composição da sociedade, na qual seus ancestrais desempenharam funções de destaque tanto na colonização do território quanto nas batalhas que marcaram a constituição do Estado nacional. Livresco e por isso dado aos confortos domésticos, Borges compensava a passividade narrando histórias de bravura, disputas fatais e duelos corajosos; ao mesmo tempo, honrava os costumes da família que na prática não conseguia emular.

O leitor é apresentado no primeiro parágrafo do conto ao jovem Benjamín Otálora, "compadrito" dos subúrbios de Buenos Aires que levava uma vida completamente comum, até que se descobriu corajoso e por isso capaz de integrar um grupo de "gauchos" dedicados às tropas e ao contrabando. Logo que parte para cumprir a primeira tarefa que lhe fora confiada, vê-se diante da oportunidade de se tornar um dos parceiros de Azevedo Bandeira, figura destacada naquele cenário e dotada de origens quase míticas no Rio Grande do Sul; Bandeira o recebe entre os seus, e ali Otálora vira tropeiro e depois contrabandista, empreendendo uma ascensão acelerada rumo aos postos de maior destaque. Na verdade, o que Otálora quer é usurpar a liderança de Bandeira, tomando-lhe à força mulher, arreio e cavalo. O arrivista tem a sorte de que nesse meio tempo Bandeira cai doente e afastado do dia a dia da tropa, tornando-se assim sobremaneira facilitada a ocupação do vácuo de poder; não obstante, a fim de garantir que a sucessão será bem-sucedida, Otálora também se une a Suárez, homem de confiança de Bandeira que lhe promete auxílio. Quando Otálora pensa estar na iminência de lograr êxito em sua empresa golpista, é revelada a armadilha secreta na qual fora enredado, e então já não é mais possível escapar e ele morre. Desde o princípio permitiram-lhe a aparência da glória, certos de que, no momento exato, esta seria prontamente tirada de suas mãos.

Sob a aparente trivialidade dos infortúnios de gente dedicada às armas, O Morto traz consigo a beleza dos cenários que evoca, além de temas clássicos como a precariedade da fortuna e a desmedida humana.

As imagens apresentadas são dignas de nota não só pela finalidade estética que realizam, como também pela eficiência com que Borges consegue compor em poucas palavras um cenário que é ativo na influência que exerce sobre os argentinos. A vastidão dos pampas - dilatada o suficiente para esconder mito e mistério - atrai homens de coragem enfatuada como Otálora, impelindo-os ao desconhecido selvagem, ao mesmo tempo que neles desperta a intrepidez da violência, a qual, um dia, sob condições apropriadas, poderá ser chamada heróica em vez de simplesmente criminosa. Ainda que não atenda ao chamado, é como se algo no interior de cada argentino fosse capaz de escutar a voz que convida a deixar a cidade progressivamente transformada e estranha, empreendendo uma vida nova cujo desfecho será imprevisível. 

Azevedo Bandeira controla a ação de Otálora o tempo todo, permitindo-lhe aproximar-se do topo só para depois poder tirar-lhe o chão e vê-lo se precipitando no abismo. Poderia tê-lo impedido desde o início; prefere, porém, o espetáculo da ambição frustrada. Num cenário que evoca o épico e, por isso mesmo, o transcendente, e sendo a pena do antigo "compadrito" a fatalidade da morte, é possível pensar em Bandeira como sendo Deus, e na desdita de Otálora como a sina insidiosa da vida humana; Deus permitiria ao homem a ilusão da liberdade e a proximidade do sucesso como quem arma uma armadilha para gozar o riso diante do espetáculo da queda do incauto; se se tratasse da mera contenção da desmedida orgulhosa, seria suficiente a poda do broto viciado; se vários passos adiante são permitidos, é porque a queda imprevista constitui uma finalidade almejada. No passo interpretativo que sugere, Borges não vai apenas do local ao universal: verdadeiramente, salta em direção ao cósmico.

Outra possibilidade que o texto insinua: se a natureza que são os pampas atrai o homem rumo à vastidão tornada assim medida do gesto heróico, e sendo este fadado desde sempre ao malogro, não seria a criação um sistema de erros engendrado por um Deus cruel visando ao seu deleite sádico? A essa altura de O Aleph, não é possível saber se a revolta metafísica de Borges chegou tão longe.

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