Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues

A peça Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, é tradicionalmente conhecida pela forma como apresenta a história do protagonista homônimo: por meio dos diferentes relatos fornecidos por Guigui ao sabor das flutuações emocionais que atravessa, o leitor nunca chega a saber ao certo quão vil ou heróico era o bicheiro de Madureira, muito menos os pormenores da relação fatídica entre ele e o casal Celeste e Leleco. A imprecisão serve para alimentar a aura mítica da personagem, aspirante a essa condição desde que decidiu substituir os dentes perfeitos pela dentadura de ouro que lhe deu a alcunha. Menos comentadas, no entanto, são as inverossimilhanças que permeiam o tempo presente da ação cênica, assim como o interior de cada versão contada por Guigui; somadas às variações inerentes às versões, elas podem ser tomadas como uma dupla afirmação do dramaturgo acerca tanto do caráter difuso do mito quanto da incoerência humana, que se articulam numa relação em que esta se serve daquele.

Bicheiro poderoso no submundo dos subúrbios cariocas, Boca de Ouro compensa suas origens humilhantes - teria nascido numa pia de gafieira - exercendo poder de vida e morte sobre as pessoas e cultivando uma aura de deus asteca, cioso de que encerrará sua vida consumando a glória da sua dentadura dourada num caixão feito do mesmo metal. Logo é informado, contudo, que Boca de Ouro morreu em condições atrozes, o que move o jornal O Sol - também ele dourado e capaz de jogar luz sobre quem queira dele participar - a procurar sua ex-amante, Guigui, sabidamente ressentida com ele, a fim de cavar um furo de reportagem em que seja exposto um grande crime do falecido. A estratégia é abordar Guigui sem antes lhe contar sobre a morte, de modo a preservar seu ressentimento. Posto em ação o plano, Guigui corresponde às expectativas e dispara num relato horrendo sobre as maldades cometidas por Boca de Ouro contra o casal Celeste e Leleco, que o procurou em busca de dinheiro. Porém, ao saber que o criminoso morreu, declara seu amor por ele, causando ciúmes em Agenor, seu esposo atual; desespera-se com a reportagem difamatória que ajudou alimentar; e por fim enceta um novo relato dos fatos, sensivelmente diferente do anterior e evidentemente mais favorável àquele que antes foi apresentado como vilão. Na sequência, ao perceber que Agenor ficou nervoso a ponto de a abandonar, conclui a peça com uma terceira versão dos mesmos fatos, novamente “espinafrando” Boca de Ouro, agora assassino de mulheres.

Os três relatos diversos são movidos pelas intenções de Guigui: primeiro se vingar de Boca de Ouro, que a abandou; depois fazer-lhe o elogio fúnebre, retificando a realidade em seu favor; e, por fim, reconciliar-se com Agenor, demonstrando a inferioridade moral do bicheiro. Uma vez que o protagonista morreu e o leitor não tem acesso à realidade do que vivera senão mediante os relatos de Guigui, só lhe resta confrontar as versões à procura dos elementos comuns - e eles existem, acenando assim à “verdade real”, ainda que de forma precária.

Na versão do primeiro ato, Celeste e Leleco vivem bem juntos. Determinado dia, Leleco não se levanta para trabalhar, Celeste o acorda e ele então revela que foi despedido após agredir o chefe por causa de uma brincadeira de mal gosto sobre torcedores do fluminense. A mãe de Celeste ainda não morreu. Leleco é quem primeiro procura Boca de Ouro, e este logo percebe que o rapaz é jogador e capaz de vender a própria esposa por dinheiro de jogo. Celeste é chamada, Leleco se retira por um tempo, Boca de Ouro a assedia, movido por um desejo que existia antes de ser procurado; ela resiste, Leleco toma atitude, não dá um tiro em Boca de Ouro, apesar de ter a oportunidade, e este finalmente o mata.

Por outro lado, na versão do segundo ato, Boca de Ouro é antes mostrado com um homem, que lhe revela quem foi sua mãe. Cortada a cena, Celeste chega em casa e Leleco, que chegou mais cedo, surpreende a mulher, perguntando-lhe sobre o que fazia em Copacabana num táxi com outro homem. Ela revela a traição, mas também que foi dispensada pelo amante, não sendo assim possível extorquir dinheiro dele. Leleco, depois de contar que a mãe dela morreu, propõe que tentem tirar dinheiro do Boca de Ouro. Celeste vai lá, joga charme pra cima do bicheiro, e na sequência aparecem algumas grã-finas e acontece um concurso dos peitos mais bonitos. Após a vitória, Celeste se rende por completo a Boca de Ouro, Leleco chega e tenta convencê-la a voltar, os dois brigam, ele ameaça Boca de Ouro com um revólver, e por fim Celeste crava um punhal nas costas do marido.

Já na versão do último ato, Leleco viu Celeste em Copacabana num táxi, ao lado do próprio Boca de Ouro, e por isso exige satisfações ameaçando-a com um revólver. A mãe dela já morreu há alguns dias. Ele apostou o número do táxi no jogo e não ganhou. Boca de Ouro se prepara para receber  a grã-fina Maria Luísa, quando Celeste chega e lhe avisa que Leleco vem armado para buscar vingança da traição. Leleco chega e inventa a história de que quer o pagamento pelo jogo que ele na verdade perdeu, provavelmente como compensação pela traição. Boca de Ouro perde a paciência, Celeste entra e, sob a promessa de ficar com o dinheiro que Leleco exige, concorda em ajudá-lo a matar o marido. Depois de morto Leleco, Maria Luísa chega, Celeste se enciuma, ainda mais se tratando de uma antiga inimizade, as duas começam a discutir, Boca de Ouro perde a paciência e, surpreendentemente, acaba matando Celeste, que ele antecipava poder lhe causar problemas no futuro.

Os relatos são intrinsecamente problemáticos, independendo para isso da variação posterior, na medida em que Guigui conta sobre fatos que nunca presenciou, tendo no máximo ouvido falar; afinal, nunca esteve na casa de Celeste e Leleco para poder contar tantos pormenores da relação do casal. O que sobra do confronto das versões é que os dois precisavam de dinheiro e por isso procuraram Boca de Ouro; Boca de Ouro, por sua vez, tinha interesse em Celeste, e em algum momento esse interesse o levou a um conflito com Leleco, o qual acabou resultando na morte deste. Afora isso, há circunstâncias e sequências à disposição dos interesses de Guigui, que delas se vale para se expressar emocionalmente. Conforme a ex-amante dispara os seus relatos, mais distante vai se tornando a figura de Boca de Ouro; apesar de ser possível extrair dos relatos somente um núcleo de fatos certos, as circunstâncias variáveis não parecem menos críveis, pois se coadunam numa relação de verossimilhança com aquilo que é invariável. Nesse passo, Boca de Ouro se multiplica numa personalidade que encerra inúmeras e contraditórias potências num grau máximo, afastando-se assim do humano tanto quanto se aproxima do mito.

Boca de Ouro, que buscava a mitificação de um deus asteca para compensar o passado inglório, acaba conseguindo o intento ao alimentar a imaginação das pessoas com sua personalidade igualmente capaz do bem e do mal. É através das impressões deixadas e das projeções que estas alimentam no povo que Boca de Ouro se perpetua no tempo. Está aí a estrutura mítica personificada pelo “Drácula de Madureira”: uma realidade fugaz e por isso mesmo capaz de inúmeras potências imaginadas pelo outro.

Esse outro que imagina e projeta faz essas coisas imbuído de propósitos que lhe sirvam; a flutuação das projeções corresponde às próprias incoerências do indivíduo. Na peça, as incoerências estão por toda parte, desde a narrativa moldura, representada pela equipe do jornal, Guigui e Agenor, até as personagens da narrativa contada, como Celeste e Leleco.

O jornal O Sol, até o dia anterior à morte, elogiava Boca de Ouro, mesmo conhecendo seus crimes; quando provavelmente não há mais propina, pretende pintar sua figura em cores escandalosas. 

Agenor temia que a mulher desse a entrevista por medo do Boca de Ouro; ao saber que morreu, afirma que não era homem e só andava com capangas. Guigui retruca dizendo que Agenor é um banana. Guigui primeiro detona com Boca de Ouro e quer que a entrevista seja publicada; Agenor é contra. Depois, Guigui só tece elogios ao homem e quer reter a entrevista; Agenor é quem quer publicar.

Guigui se arrepende de não ter caído na zona e voltado pra casa; ao final, diz que gosta de Agenor pra chuchu. Faz pouco caso das crianças e pede que Agenor leve-as com ele; em seguida, deixa-se ser convencida a reatar justamente pensando nos filhos.

De outra parte, Leleco, apesar de estar enciumado pela esposa, não hesita em prostitui-la, de forma mais ou menos explícita a depender da versão. Celeste a princípio se preocupa com a morte da mãe, mas logo parece esquecer o fato.

O jornalista, apesar de se prontificar a manipular Guigui em prol de um furo de reportagem, no terceiro ato parece se preocupar sinceramente com o futuro do casal e intervém para conciliá-la com Agenor, no que é bem-sucedido.

Em todas essas flutuações, o mito Boca de Ouro move as personagens numa ou noutra direção. É enganoso, porém, pensar nelas apenas como incoerências humanas: abaixo da incoerência objetiva, encontra-se a coerência formada pelo instinto de sobrevivência - as personagens se contradizem, mas sempre movidas pelo sentido de autopreservação; ninguém se imola pelo outro gratuitamente.

Ao tratar da dificuldade na obtenção da verdade e dos equívocos a que estão suscetíveis os relatos, Nelson Rodrigues não foge ao mote que o guia em outras peças, traindo-o em prol de uma obra de cunho epistemológico; se há epistemologia em Boca de Ouro, é para servir ao retrato da natureza humana, este sim o grande tema do dramaturgo. A natureza humana exposta no palco é pautada pelo instinto de sobrevivência, por força do qual se multiplica em máscaras sem coerência aparente entre si; nesse processo, a variabilidade do mito é um instrumento útil à consecução dos objetivos pedestres dos seres humanos.

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Comentários

jaciara disse…
Muito profundo, concordo imensamente com a análise.
Obrigado, Jaciara. Fico feliz por ter gostado da análise.

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