Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski

 


Vê-se com angústia que nem mesmo Dostoiévski - na última obra e depois de uma vida romanesca e inúmeras peças literárias dedicadas a perscrutar os desvãos da alma humana -, tenha conseguido chegar a uma resposta conclusiva, uma solução de compromisso que permita viver com tranquilidade e sem incertezas diante das grandes questões da existência. Defrontado pelos impasses do seu tempo - no fundo, os mesmos de antanho e do porvir -, o grande escritor russo não se furta a insinuar soluções e propor caminhos, porém sempre desconfiado do que diz e ainda perplexo quanto ao que se conserva infenso a qualquer elaboração verbal. Pinta alegremente a luz, mas sem deixar de carregar nas tintas das sombras circundantes, onde se esconde o incógnito. Expressa-se como quem diz que é humanamente possível apenas a aproximação do mistério do bem e do mal, que a fruta comida no Éden não bastou, e que só a misericórdia que tudo perdoa e esquece pode compor um quadro harmônico, borrando as margens do claro e do escuro para além de todo sistema simétrico de crime e castigo.

Os Irmãos Karamázov, por causa do seu título, pode facilmente ser confundido com uma saga familiar. Nas sagas familiares, conta-se a história de uma família no curso de sucessivas gerações, ou elege-se como protagonista uma única geração, representativa do drama de uma mudança de época. Apesar de ser possível identificar n’Os Irmãos a transição de uma geração para outra, assim como a representação, dentro do microcosmo familiar, de questões que pautam a época, preponderam ali questionamentos que ultrapassam as contingências de tempo e espaço, no caso, a segunda metade do século XIX russo; trata-se antes de um palco familiar e provincial no qual Dostoiévski decide explorar as premissas e consequências das posturas que a humanidade assume diante do bem e do mal, assim como as dúvidas que cercam a separação entre um e outro, de modo que, mais do que sobre uma família e um povo, fala-se sobre o humano universal. Nesse sentido, é difícil não perceber os personagens como tipos - ainda que muito elaborados -, e os acontecimentos, como experimentos laboratoriais do comportamento humano. Observa-se por detrás da dinâmica romanesca um grande ensaio, como que numa antecipação do que Saramago fará nomeadamente em alguns de seus livros.

A família Karamázov é composta de quatro membros, todos sobreviventes das vicissitudes que a desmancharam de fato. O patriarca, Fiódor Pavlovitch, é o que poderia ser chamado um malandro russo, alguém que ascendeu socialmente na base da gatunagem e às margens, sempre atraindo o desprezo coletivo, nunca, porém, a ponto de ser considerado um proscrito; afinal, tornara-se rico, e por isso ostentava influência. Fiódor casa-se duas vezes, e ambos os casamentos são malsucedidos, terminando invariavelmente com a morte da esposa; do primeiro nasce Dmítri; do segundo, Ivan e Alexei. O pai negligencia os filhos e os três acabam sendo criados apartados, por parentes e amigos, e mesmo os dois que são filhos da segunda esposa, não gozam de estreita convivência. Já adultos, cada um criado de um jeito e carregando dentro de si particularidades e pendores inatos, confluem para a casa paterna, e dessa confluência decorre a intriga do romance.

A caracterização de cada filho constitui também as premissas da discussão filosófica que Dostoiévski enceta. Dmítri, o mais velho, herdou do pai o arrebatamento e o fogo no trato com os fatos da vida: apaixona-se perdidamente, gasta prodigamente e vocifera o que lhe vem à cabeça, sem medir consequências. Ivan, o filho de meio, é o mais instruído de todos, identificando-se com a formação europeia e liberal que distinguia os russos cosmopolitas: faz-se perguntas sobre a existência e o devir do homem para as quais é difícil encontrar respostas satisfatórias, além de ser cético e ter dificuldades em crer em Deus, e, por isso - e aí está o problema -, ter dificuldades igualmente em encontrar bases outras sobre as quais erigir a moralidade. Alexei, o caçula, vive no mosteiro local, ao lado de um célebre mestre espiritual, Zózimo, empenhado na consecução do que acredita ser sua vocação religiosa: não é hipócrita nem judicioso, mas antes um verdadeiro santo, irradiante de bondade, capaz de aquebrantar até mesmo o coração vulgar do pai. Dostoiévski joga assim com três reações possíveis ao drama que lhe interessa: a da ingenuidade e espontaneidade popular e irrefletida, representada por Dmítri; a do homem de letras e racional, posto que desesperada, representada por Ivan; e a do cristianismo puro e reputado autêntico, vivido em sua plenitude heroica, representada por Alexei.

O movimento das peças desse jogo será impulsionado pela reação dos filhos ao pai - no que também se insere a temática da paternidade traumática -, e, especialmente, pelo conflito instaurado em torno da herança de Dmítri e da disputa entre pai e filho pelas graças da jovem Grúchenka. Em termos puramente fáticos, pode-se dizer resumidamente que o livro conta a história de como Dmítri foi recebendo aos poucos e sem registros precisos a herança deixada por sua mãe, em posse do pai; desconfiou de que ainda lhe faltavam ser pagos três mil rublos, dos quais necessitava para saldar uma dívida que lhe envergonhava; e entrou em conflito com o pai, seja porque este se recusava a lhe pagar essa soma, seja porque, com a mesma soma, pretendia seduzir a jovem que Dmítri amava insanamente.

Ao redor desse conflito principal entre pai e filho por conta de dinheiro e mulher, avolumam-se tensões, receios, ameaças - som e fúria, para usar as palavras de Shakespeare. Dmítri se desconjunta ao longo dos dias, presa sem resistências dos impulsos mais desordenados. Ivan pensa, pensa muito sobre tudo, e por isso tem dúvidas, muitas dúvidas, e não se priva de compartilhar pensamentos, dúvidas e hipóteses incendiárias com os mais despreparados ouvintes. Alexei tenta, na medida das suas forças, evitar que o pior aconteça; no entanto, a tensão interna que sente entre exercer sua vocação no claustro ou no mundo, acaba por lhe impedir uma ação mais eficaz. Inobstante os esforços despendidos e o encadeamento errático e imprevisível dos acontecimentos, pressente-se a inevitabilidade de um desfecho trágico, o qual elevará a um novo patamar a fúria de Dmítri, as dúvidas de Ivan e a vocação à santidade de Alexei.

Dostoiévski compõe o romance com feitio policial; acompanhamos com atenção os pressupostos de uma tragédia; presenciamos os protagonistas todos juntos e em grupos menores, na complexa e turbulenta relação que mantêm entre si; temos acesso à solidão de cada um, ao que pensam; no meio, o desfecho fatal e as dúvidas que surgem; e, por fim, a tentativa de obtenção de respostas a essas indagações, seguidas de um grandioso julgamento final, a que protagonistas e personagens secundários acorrem solene e gravemente, desnudando-se aos olhos do povo, que julga o caso na qualidade de júri. É perante a gente simples da Rússia que os personagens d’Os Irmãos terão que prestar contas, o que, por si só, já indica certas inclinações do escritor no tocante às questões em pauta.

Entretanto, como se trata preponderantemente de um romance de ideias, posto que permeado por frenética ação e reviravoltas, Dostoiévski não se limita a se referir ao abstrato mediante representações típicas, ou por palavras ditas em diálogos ligeiros; ao longo do romance, abre clareiras bem definidas, em que os personagens verbalizam suas ideias com maior profundidade. A primeira dessas clareiras é a reunião de toda a família no mosteiro, aos pés do famoso mestre espiritual Zózimo, de quem espera ouvir conselhos e finalmente conseguir a pacificação dos conflitos existentes; o cristianismo elementar de Zózimo tem aqui a oportunidade de se defrontar com o ceticismo de Ivan - muito é dito, restando, porém, como lembrança indelével, a advertência de que há uma grande distância entre o bem abstrato e o bem que se pratica em concreto, entre o próximo como ideia e o próximo ao lado de cada um. Num segundo momento, tem-se a conhecida história do Grande Inquisidor, contada por Ivan e representativa das suas ideias: exsurge dela o drama do livre-arbítrio, o dom divino que mais parece uma condenação dolorosa - Cristo prometeu libertar o homem, para isso contando com o exercício de sua liberdade; mas esse exercício é demasiado custoso, só os heróis o conseguem, jazendo impotente todo o resto; a religião, as instituições, o Grande Inquisidor, se à primeira vista parecem trair Cristo, na verdade libertam a humanidade e possibilitam a todos, indistintamente, o consolo, pois os que não são heróis carecem de determinações e do cerceamento da liberdade que lhes alivie o fardo. Depois, num terceiro momento, quando da morte do mestre Zózimo, coligem-se os seus principais ensinamentos, que representam o ápice do cristianismo russo, ao fim dos quais sobressai a necessidade da misericórdia sem maiores condições - do perdão, ainda que não se renuncie a uma conduta moral: à possível judiciosidade da moralidade deve sobrepujar o perdão. Outro momento, mais breve, porém de suma importância para a pesquisa filosófica do romance, é a notícia de um artigo escrito por Ivan, em que, ao explorar a inexistência de Deus, avança a hipótese segundo a qual, se Deus não existe, tudo é permitido, ou seja, não há base para a moral.

A obra, ao longo dos seus muitos acontecimentos, reviravoltas, personagens e diálogos, direta ou indiretamente revolve, exemplifica e atualiza essas ideias, funcionando como laboratório de suas consequências. Conquanto seja possível perceber um pendor do próprio Dostoiévski para a solução cristã, calcada numa santidade genuína, antes que numa religião hipócrita e moralizante, sai-se do livro com a impressão amarga de que, apesar dessa inclinação, as dúvidas vocalizadas por Ivan ainda pairam no ar, para sempre na esfera humana, inalcançáveis por respostas satisfatórias. Dessa forma, o escritor russo propõe uma solução, sem, contudo, renunciar ao reconhecimento da complexidade do drama humano e à perplexidade que ele provoca.

Ao final, é como se Dostoiévski estivesse convicto de que, para além do debate racional, essas questões se solucionam com maior facilidade mediante atos, e não pela elaboração de ideias. Em outras palavras, ser bom e agir corretamente, ao fim e ao cabo, são atitudes imediatamente percebidas como tais quando efetivamente desenvolvidas. Para ilustrar essa ideia, o autor abre outra clareira no romance, desta vez por meio de uma trama paralela, ligada à trama principal por laço tênue. Trata-se dos episódios dos meninos que Alexei conhece, primeiro em conflito, depois em comunhão humanitária, os quais constituem certamente as mais belas páginas do romance. Um menino cujo pai fora envergonhado por Dmítri publicamente passa a sofrer com o tormento dos colegas, que o relembram do fato constantemente, em tom de chacota. Indignado, o menino se volta contra os outros, inclusive agredindo um deles mais seriamente. Alexei os encontra justamente num desses momentos de conflito, inteira-se da razão do problema e das condições precárias da família do menino, e a partir daí passa tanto a ajudar a família quanto a orientar as crianças. Por força de sua influência benéfica, as crianças dão vazão ao que há de espontaneamente bom e luminoso em seus corações, de modo que, quando o menino envergonhado adoece e padece solitário, após o perdão e o exercício misericordioso do esquecimento do passado, a ele se juntam os outros meninos a fim de tornar seu padecimento mais leve e sua existência, mais feliz. O grupo dos meninos e a evolução por que passa constituem um microcosmo com o qual Dostoievski ilustra sua proposta de que as boas atitudes contêm maior poder de transformação do que o aferrar-se exclusivamente às ideias abstratas sobre moralidade; sugerem, talvez, que, tivessem os irmãos Karamázov recebido na infância a mesma influência salutar que os meninos receberam, não teriam chegado aonde chegaram. Portanto, a fim de promover o bem, cumpre praticá-lo no que tem de óbvio e simples, em vez de perscrutar seus mistérios e fronteiras incertas.


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