O Primo Basílio, de Eça de Queirós

Penguin-Companhia

Para se desdobrar, a complexidade do drama humano independe do nível geral de refinamento da sociedade em que se encontra inserto; porém, apenas a penetração da inteligência do indivíduo intrépido é capaz de a flagrar na fugacidade da sua ocorrência e cristalizá-la em arte, impedindo que se perca no tumulto indistinto dos dias, e assim aprofunde a baixeza da autoconsciência coletiva. N’O Primo Basílio, Eça de Queirós ergue sua lanterna e perscruta a Lisboa burguesa do século XIX, a fim de revelar-lhe os traços peculiares e contradições, ambicionando com esse movimento trazer luzes à sociedade que reputava cada vez mais periférica e esquecível. 

No oitocentos luso, a marginalidade geográfica de Portugal parece se transformar em marginalidade também política e cultural, numa Europa em que a industrialização avança e a cultura se distancia das ideias de antanho, ao passo que o país ibérico guarda muito do campo e dos pensamentos alhures superados, resignando-se à nostalgia impotente da glória das navegações, que cada vez têm menos a dizer - e entregar - ao presente. Ao fixar seu flagrante, no entanto, Eça de Queirós não revela um objeto de observação raso e desinteressante, mas, isto sim, a complexidade humana que é universal e cuja enunciação já é o caminho da conquista da autoconsciência coletiva e elevação do nível geral da cultura; em outras palavras, a arte realizada por Eça de Queirós demonstra que o atraso de uma sociedade está antes na ausência de um olhar introspectivo e perscrutador que na simplicidade e desinteresse aparentes do cotidiano.

Jorge é um engenheiro de minas há pouco tempo casado com Luísa, jovem bonita e aprazível, que desfruta no lar conjugal das comodidades amenas da pequena burguesia, pelo que se vê desobrigada, por exemplo, de cuidar diretamente dos afazeres domésticos; ao ócio que decorre dessa conjuntura, somam-se aqueles resultantes da ausência de filhos, a absorver as atenções da mãe, e da condição geral da mulher na sociedade da época, de quem não se esperava - e a quem não se permitia - ação e protagonismo eficazes no mundo que se estendia para além dos estreitos limites domésticos. Jorge e Luísa não contam com parentes próximos que frequentem a casa e ocupem o dia a dia; os frequentadores habituais são amigos, representantes a seu modo da sensaboria da sociedade lisboeta: o conselheiro Acácio, personalidade retórica e conformista, com tintas bacharelescas e oficiais; Julião, médico mal colocado na sociedade, desalinhado e mambembe; Sebastião, amigo de longa data de Jorge, cuja existência parece sempre eclipsada pelo relativo brilho do outro; e Felicidade Noronha, senhora mais velha e solteira, acometida de todos os desconfortos e fadigas das juntas, intestinos e pulmões que a literatura é pródiga em atribuir aos portugueses. Nesse seleto grupo, o jovem casal é o centro em torno do qual orbitam os outros; como, porém, nem o casal é especialmente brilhante, nem os outros dispõem de luz própria, as interações estabelecidas retroalimentam-se na mediocridade, contribuindo dessa forma para que a sociedade lisboeta posta na mira de Eça de Queirós conserve-se impermeável às novidades e avanços da época. Todavia, nesse lar lisboeta burguês tão pouco atrativo, o ócio de Luísa abre uma clareira por meio da qual as luzes - identificadas com o estrangeiro - podem entrar, a saber, os romances que a personagem lê e a amizade que mantém com Leopoldina, senhora reputada libertina e por isso execrada socialmente. As intrigas romanescas e as aventuras de Leopoldina causam sobressaltos ao coração de Luísa, sugerindo-lhe ao pé do ouvido, em sussuro, que talvez não baste a felicidade amena e controlada de que desfruta, pois uma vida mais empolgante é possível.

O ócio assim perturbado de Luísa é submetido à provação extrema quando Jorge precisa viajar por semanas ao Alentejo para se desincumbir de obrigações profissionais. Precavido, ele orienta Sebastião, seu braço direito, a ficar de olho na esposa, principalmente nas relações que mantém com Leopoldina, já identificada como fonte de perturbação e maledicências, inobstante a amizade de infância com Luísa. Nenhuma orientação especial é endereçada aos romances, aparentemente despercebidos como causa de tumulto dos afetos da jovem. Entretanto, à outra vida possível, somente sugerida pela amiga e pelos livros, será acrescida a sugestão - e oportunidade - representada pela chegada do primo Basílio, antigo amor do passado. Tão logo Jorge ruma ao Alentejo, Luísa recebe a notícia de que seu primo Basílio regressa a Lisboa após se mudar para o Brasil e deambular pela Europa avançada, trazendo consigo a riqueza e o chic que esse périplo lhe proporcionara. Basílio fora noivo de Luísa há muitos anos, mas, por conta da ruína da sua família, rompeu o noivado e mudou-se para o Brasil, onde se reergueu fazendo-se rico num negócio de seringueiras na fronteira com o Paraguai; depois disso, gozou da vida libertina da Europa avançada - a mesma dos romances, custosamente emulada por Leopoldina em Lisboa -, regalando-se no seu epicentro, Paris, terra da promissão dos portugueses oitocentistas não conformistas.

Naturalmente, Basílio não tarda a visitar a prima, exibindo sua superioridade cosmopolita, contrastante com a domesticidade tediosa e provinciana em que Luísa se encontrava submersa, agora mais do que nunca. As sugestões romanescas encontrarão no ócio supremo - e no parceiro à mão - a oportunidade irresistível de terem vazão, e de hesitação em hesitação, de conversa em conversa, e de contraste em contraste - sempre na intimidade tépida da sala de visitas -, os sobressaltos do coração de Luísa se avolumarão até ao ponto em que cede aos encantos do primo - e, por corolário inexorável, às penas inescapavelmente cominadas às mulheres que tropeçassem no cumprimento dos deveres conjugais.

Com maestria, Eça de Queirós revolve a psicologia de Luísa em meio ao drama moral que a cerca; traça a dinâmica da sua queda - da resistência inicial ao consentimento entusiasmado; arma cenas envolventes e significativas; põe na boca das personagens diálogos - e lhes emudecem em silêncios - reveladores e desconcertantes; tudo permeado do mais fino erotismo, entrevisto em sutilezas tais que podem passar despercebidas, mas, uma vez descobertas, só fazem reforçar sua lascívia. É no momento desse aparente movimento centrípeto - dos limites estreitos da sala de visitas, aos escondidos da alcova adúltera, e depois aos mais abafados do coração - que Eça de Queirós leva o que poderia ser apenas mais um romance de infidelidade conjugal a um patamar superior, abrindo-se para fora por meio dos julgamentos e consequências da traição de Luísa.

Os vizinhos da rua estranham que a senhora receba um jovem tão janota, repetidas vezes, sempre por dilatados períodos de tempo, quando o marido se encontra fora, e depois que a senhora se apronte com tanto esmero para sair à rua diariamente, com destino desconhecido. Sebastião, incumbido de vigiar Luísa em suas relações com Leopoldina, ouve os comentários, preocupa-se com a má-fama que se forma, com o que Jorge tirará disso, mas não avança para além da sua timidez e personalidade tacanha, receoso da reação de Luísa e também crente em sua retidão moral. Os amigos - Acácio, Julião e Felicidade Noronha - travam contato com Basílio e extraem do encontro impressões variadas. Leopoldina deleita-se com o ocorrido. A partir do epicentro que a vida conjugal de Jorge e Luísa representa, os amigos que o orbitam ganharão cores vivas e contornos nítidos na medida em que reagem ao escândalo insinuante, proporcionando a Eça de Queirós campo fértil para desenhar vasto panorama da sociedade portuguesa de então, e corroer-lhe as bordas com sua ironia implacável, exercitada ao longo do romance com cada vez mais refinamento e acidez. Inobstante a força e diversidade dessa explosão reativa, é no antagonismo de Juliana, a empregada doméstica de Luísa, que o romance dará o salto decisivo.

A Juliana falta tudo o que se encontra à disposição de Luísa (sem, no entanto, lhe fazer feliz): beleza, dinheiro, confortos, um marido, uma casa. Juliana amarga desde a infância a triste sina das filhas do povo pobre e provinciano, de quem muito é exigido, mas pouco dado em troca. A instabilidade da condição social da personagem perturba-a sobremaneira, motivo por que passa a vida tentando fazer seu pé de meia, o pouco que lhe proporcione certa autonomia de sustento: primeiro junta algum dinheiro, que termina por gastar com médicos por ocasião de uma moléstia; depois, vela pacientemente a tia de Jorge, velha intratável e padecente, na esperança de que algo lhe seja legado em herança - mas sem sucesso; por fim, tenta se resignar à desesperança do trabalho inescapável, de que a casa de Luísa é o símbolo atual, mas - também neste caso - sem sucesso. Juliana não é só o tipo singularizado do cotidiano de uma classe social; é também, a despeito de qualquer determinismo externo, extremamente rancorosa, insociável, maledicente, invejosa, ruim. A desventura de classe aliada ao caráter torto só fazem tornar Juliana pouco querida de toda a gente, e por isso ainda mais desgraçada na sociedade. As cumplicidades com a patroa, a complacência com os desfeitos, a irreverência sexual, tão presentes nas de sua classe, e que lhes ajudavam a atenuar a existência - de que é exemplo a cozinheira Joana, também muito bem caracterizada por Eça de Queirós -, são coisas que não apetecem a Juliana. Nesse contexto de desesperança biliosa, a descoberta da aventura sexual de Luísa - em acréscimo aos privilégios de que já gozava, e que a ela faltavam gravemente -, torna-se a oportunidade perfeita para que Juliana finalmente consiga seu pé de meia através da chantagem, ao mesmo tempo que se vinga, na pessoa de Luísa, contra tudo o que a sociedade recusava-se a lhe dar. Na voragem da intriga chantagista, Eça de Queirós desenvolve a psicologia peculiar de Juliana, explora as dúvidas e percalços ínsitos à vingança, e desce a detalhes espúrios do panorama social traçado, naquilo que tem de injusto e negligenciado.

Acertadamente, no entanto, o romance não se reduz à exploração esquemática da rivalidade entre a rica e bela Luísa e a pobre e feia Juliana: perpassa ambos os polos e suas relações as condições estruturais da mulher e do pobre na sociedade da época, de encontro às quais as vicissitudes pessoais são capazes de causar os maiores desastres. Luísa trai; mas a maior parte dos homens - inclusive Jorge, como podemos supor a partir de determinada passagem -, traem igualmente, sem sequer a metade das consequências adversas resultantes da infidelidade feminina. Não se trata de louvar o adultério em relações monogâmicas, ou corroborar o chic da libertinagem parisiense e aristocrática em oposição ao suposto atraso da fidelidade conjugal apregoada em Lisboa; o que vale ter em vista é a diferença injustificável no sistema de recompensas e punições, no qual ao equívoco da mulher - afinal, próprio da condição humana -, são cominadas consequências fatais, ao passo que do tropeço do homem, pouco ou nada advém, às vezes sequer a consideração de que se trata de um erro; a diferença do que sobrevém a Luísa e Basílio depois da descoberta do adultério é marcante nesse sentido. De outra parte, Juliana tem um gênio difícil e propenso ao mal; por opção pessoal, condizente com seu modo de ser, prefere não recorrer aos expedientes de suas colegas de classe a fim de obter uma convivência mais amena e proveitosa com a patroa. A dificuldade de gênio e a luta contra tendências deletérias da personalidade são contingências da condição humana; o não querer recorrer aos expedientes da adulação, uma legítima escolha pessoal; entretanto, sendo aquela uma sociedade em que as classes desfavorecidas eram tão negligenciadas - e em que mais valia manter baús antigos num cômodo de clima ameno para conservar-lhes a formosura, sem pensar que, ao mesmo tempo, a empregada - ser humano - padecia os calores e insalubridade do sótão -, essas contingências encontram terreno propício para florescerem, enquanto que a escolha feita paga um preço altíssimo por ser exercida. Dito de outro modo: a pobreza e desigualdade social, além da inexistência da garantia de um mínimo capaz de prover a existência digna de Juliana, potencializam suas más inclinações; de outra parte, a escolha de não ser aduladora custa-lhe não apenas a simpatia da patroa, mas coloca em risco a própria continuidade do seu emprego, de que depende para sobreviver.

Ao olhar com argúcia para a sociedade lisboeta de sua época, Eça de Queirós vê para além do provincianismo, caturrice e falta de luzes de sua gente: vê igualmente, por ser profundo o olhar, a crueldade de estruturas sociais menos contingentes, mais antigas, que a seu modo também se faziam sentir na Paris cosmopolita tão louvada por Basílio e emulada sem sucesso por Leopoldina: a que reduzia a liberdade feminina e subjugava sem peias as mulheres ao domínio masculino; e a que condenava o pobre a uma luta inclemente pela sobrevivência. No espaço criado por essas estruturas, a desigualdade se manifesta pelas consequências e pelo favorecimento ou não dos equívocos próprios da condição humana: a infidelidade conjugal de Luísa só tem consequências fatais porque é ela, Luísa, quem trai, e não Jorge; o gênio ruim de Juliana só se desenvolve de modo a levá-la igualmente à ruína moral e existencial porque a luta pela sobrevivência se faz presente e implacável no seu encalço, e sua preferência pessoal - nomeadamente a de não adular - só custa tão caro porque seu campo de ação é assaz limitado - tivesse Juliana as condições de Luísa, seus modos talvez lhe fizessem somente uma pessoa pouco querida na sociedade, mas nunca alguém à beira do abismo existencial. Eça de Queirós revela n’O Primo Basílio que a diferença entre ser homem ou mulher, ou entre ser rico ou pobre, não se faz consequente pela diferença de retribuições à pureza e retidão de uma ou outra condição, mas antes pela possibilidade, numa ou noutra, de humanamente errar e seguir avante. Penso que no contexto atual, em que desigualdades e minorias são muito discutidas, essa seja uma visão a ser destacada, na medida em extirpa a noção - e exigência - de que as classes desfavorecidas sejam puras, e concomitantemente reforça a ideia de que o que se deseja são as mesmas possibilidades de acertar e errar sem tamanha diversidade de resultados.

No ato mesmo de denunciar as mazelas dos seus contemporâneos, Eça de Queirós encontra o universal no particular, e eleva a autoconsciência de sua gente, provando dessa maneira que o esforço da literatura não depende, para sua grandeza, da precedente elevação da matéria sobre a qual se debruça, mas sim da ousadia e penetração do olhar do escritor em particular. Vale dizer, se há uma alta cultura, é porque em algum momento alguém cometeu o ato destoante de olhar a sociedade subjacente mais detidamente; isso é consolador para as sociedades em crise, pois quer dizer que a riqueza do objeto de observação é quase um pressuposto com o qual não se deve preocupar, competindo tão somente aos esforços do indivíduo preocupado a tarefa de dar início ao movimento de elevação geral.

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Comentários

Unknown disse…
Excelente resenha, Lucas. Já botei o livro na minha lista. Obrigado pela recomendação.
Muito obrigado pelo elogio. Espero que tenha uma ótima leitura. Depois volte e me conte o que achou, se puder. Abraços!

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