A Morte e o Meteoro, de Joca Reiners Terron

Editora Todavia
imagem da capa da 1ª edição da obra pela Todavia


A Morte e o Meteoro é uma distopia discreta. O gênero se caracteriza pela concepção de uma sociedade futura na qual, ao contrário da utopia, as linhas gerais de funcionamento e organização sociais não são positivas e desejáveis, antes extrapolam tendências deletérias do presente, levando-as a consequências extremas; nesse sentido, a distopia serve como espaço propício ao exame do presente, daquilo que nele se encontra em germe, ameaçando crescer e desabrochar em flores tóxicas. No mais das vezes, porém, a linha causal que se estende do presente ao futuro distópico e permite a identificação dos problemas atuais acaba por ficar obscurecida, já que elementos circundantes e díspares se avolumam a ponto de só permitirem enxergar o futuro enquanto tal, e nada mais. A Morte e o Meteoro é uma distopia discreta porque a extrapolação das tendências deletérias do presente se dá de maneira tão sutil, que o leitor desatento pode deixar passar despercebidas as referências reveladoras dessa sociedade outra e futura. E dessa discrição a obra extrai sua força, pois de fato o presente se transforma em futuro distópico sem que o percebamos; assim, o leitor, ao atentar para o que mudou tão profundamente no universo do livro, inobstante todo o resto que é tão conforme ao presente, se espanta e fica alerta para as potencialidades do mal que se desenvolvem sob seus olhos.

Num mundo em que pouco resta da Amazônia, e em que o Chile foi submergido sob as águas do Pacífico, os últimos cinquenta índios kaajapukugi - todos homens - decidem sair do isolamento ancestral que mantinham na floresta e fazer ouvir sua voz na comunidade internacional, à procura de refúgio coletivo noutras paragens. Apesar de certa articulação com organizações indigenistas internacionais, solicitam que as negociações sejam conduzidas por Boaventura, sertanista brasileiro que, por vicissitudes de sua história pessoal, mais do que por força do seu reconhecido trabalho, aproximara-se da tribo há anos. A princípio, o Canadá abre suas fronteiras à comunidade, mas o clima frio e a paisagem tão diferente impedem que a mudança se concretize. Os índios terminam por encontrar refúgio no México, onde coabitarão com outro povo indígena, os mazatecos. A singularidade da situação - um povo inteiro à beira da extinção que parte em êxodo das suas terras ancestrais - atrai a atenção mundial, sendo, como não poderia deixar de ser, televisionada e difundida globalmente. A cena dos cinquenta índios descendo do avião no México sobre um tapete vermelho, vestindo seus trajes cerimoniais e passando pelo detector de metais, enquanto o mundo a assiste ao vivo, é particularmente feliz ao evidenciar o insólito da situação, assim como a banalidade da atenção dispensada pela sociedade contemporânea, para a qual aquele é apenas um episódio pitoresco, curioso, quase uma colagem, chamativa pelo contraste dos seus componentes.

Entre a intermediação de Boaventura e a chegada dos kaajapukugi ao México, coloca-se a figura do burocrata que trabalha no departamento mexicano responsável pela questão indígena. O rapaz vive seu próprio drama pessoal, abalado pela morte próxima e subsequente do pai e da mãe, pelo que vislumbra na participação no episódio único dos índios a esperança de redenção e realização de um ato humanitário significativo e histórico. Entretanto, por força do que sobrevém a Boaventura, o burocrata é alçado a certo protagonismo na recepção dos índios, e depois, por força do que sobrevém aos índios - e a ele próprio num ritual de que participa -, é precipitado na tarefa urgente e clamorosa de resgatar o pouco que se sabe daquele povo cujas pegadas desaparecem.

A única fonte de acesso ao que se sabe dos kaajapukugi é um vídeo-depoimento transmitido por Boaventura ao rapaz, em que narra sua vida, em especial a juventude, quando, desconsolado por uma crise familiar desencadeada pela perda do pai, guerrilheiro no Araguaia, partiu mata adentro e foi de encontro àquele povo, até então isolado do contato com o homem branco. A história pessoal de Boaventura passa não só pelo conhecimento que adquire dos ritos e visão de mundo dos kaajapukugi, mas ganha contornos dramáticos pela forma com que estes o afetam, e ele aos índios, em sentido contrário. Na interação de Boaventura com os kaajapukugi, mais complexa e discutível do que se poderia supor, há um imbricamento de crenças e fatos, uma explicação possível - ou uma ilustração circunstancial - do crepúsculo daquela gente.

Paralelamente ao espetáculo dos índios que realizam seu êxodo rumo ao México, o mundo acompanha o lançamento de uma nave espacial chinesa tripulada por um casal, que parte rumo a Marte a fim de colonizar o planeta. A visão de mundo dos kaajapukugi; o que é simbolizado e buscado mediante os seus ritos; o encontro desse povo com Boaventura e as particularidades dramáticas dessa interação; a história do burocrata mexicano; e, por fim, a colonização de Marte apenas iniciada e os acontecimentos do final do livro são elementos que se sobrepõem compondo uma mesma trama, regulada por uma força motriz que a todos perpassa, unificando-os. O drama índigena extrapola os limites da tribo, alcançando toda a humanidade, e com isso a visão de mundo do povo da floresta se prova acertada e digna de atenção. Fica ao leitor a indicação de que, ignorando, apartando e exterminando os índios, a humanidade se priva do conhecimento dela mesma, provocando assim sua destruição; no entanto, fica também a suspeita de que, ao fim e ao cabo, certos ciclos de morte e renascimento são inevitáveis, e que apenas repetimos o que aconteceu antes e acontecerá depois.

Joca Reiners Terron foi especialmente feliz ao não se limitar à criação de um enredo bem amarrado e insinuante no mistério que guarda e revela aos poucos, concomitantemente dotando-o da força própria do mito índigena cujo desaparecimento lamenta, num jogo de correspondências e analogias que evidenciam a interligação de tudo o que existe; a partir disso, a denúncia do descaso atual com esses povos se torna particularmente significativa e eficaz.

A “micronarrativa” de A Morte e o Meteoro também se destaca por sua argúcia e riqueza imagética: as percepções do burocrata mexicano que narra o livro, as palavras escolhidas, as conexões estabelecidas, suas referências, tudo se arranja de modo a provocar no leitor sensações de proximidade e estranhamento indispensáveis para contar a história.

A íntima relação entre a visão de mundo conservada pelos índios e a história que se desenrola serve para que o leitor não se veja tentado a criar relações de empatia com esses povos numa dinâmica sujeito-objeto em que o índio é objetificado num movimento museológico; ao implicar o homem branco nos desdobramentos dramáticos das concepções sustentadas pelos índigenas, Joca Reiners Terron contribui para que a relação se estabeleça entre sujeitos iguais, interlocutores e pares na saga humana.

Por ser discreta, a distopia de A Morte e o Meteoro sugere não ser necessário esticar linhas causais rumo ao futuro a fim de ali descobrir consequências adversas estarrecedoras das atitudes do presente; aponta, isto sim, para a hediondez do que se desdobra atualmente sob o véu da floresta - o qual, por seu turno, se desfaz em fumaça e poeira -, e que por ser ignorado, torna-se ainda mais hediondo. A Morte e o Meteoro parece convidar a sociedade contemporânea a não se fazer protagonista de mitos de morte e destruição, mas sim a, quem sabe, participar das passagens sapienciais, benfazejas e de ressurreição desses mesmos mitos, na esperança de que o papel de vilão não ganhe o palco do mundo pela falta de quem o desempenhe.

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