Seis Mil Anos de Pão, de Heinrich Eduard Jacob*

A civilização humana através de seu principal alimento - Heinrich Eduard Jacob

Desse modo, seria pertinente dizer que o essencial para Jacob passa por devolver ao mundo e ao homem o ethos do seu relacionamento com as coisas, ou, com mais rigor, o ethos das coisas que, ao serem revitalizadas na estética da “Sachbuch”, deixam de fato de ser meras “coisas”. E, deixando de ser apenas “coisas”, passam a ser o quê? Passam a ter história própria, em vez de serem meros pretextos ou objetos de manipulação dentro de uma história dos homens que tudo antropomorfiza, passam a ter biografia, passam a ter um destino próprio. E, se assim é, passam também à condição de personagens de narrativas paradigmáticas, nas quais o destino dos homens se joga não em função das deliberações da sua racionalidade, apontada à dominação das coisas, mas precisamente em função de uma lógica da resistência das coisas à racionalidade humana. Em analogia com o que sucedia com o mito antigo, em que o destino dos homens é precisamente a resistência implacável que o acontecer oferece à vontade humana (trágica) de domínio sobre o acontecer. (Trecho do prefácio do tradutor José M. Justo a Seis Mil Anos de Pão, de Heinrich Eduard Jacob; p. 17.)

O trecho que abre este texto é certamente demasiado longo. Hesito em dar-lhe o nome de epígrafe, pois parece-me que as epígrafes devam ser necessariamente lapidares. De todo modo, é o trecho que, lapidar a seu modo, entendo que deve fazer a abertura, na medida em que resume com argúcia o procedimento literário do alemão Heinrich Eduard Jacob em Seis Mil Anos de Pão - A Civilização Humana Através de seu Principal Alimento, ao mesmo tempo que lança luz sobre todo um campo de possibilidades de encarar a dinâmica existente entre o homem e os elementos que o cercam.

Seis Mil Anos de Pão, como o próprio título evidencia, é a história do pão ao longo dos séculos, desde sua descoberta na Antiguidade até os dias da redação final da pesquisa, em meados da década de cinquenta do século XX. Tão somente afirmar que um livro trata da história de uma coisa não é dizer muito, já que existem várias abordagens possíveis e concorrentes, desde a narrativa do desenvolvimento do objeto em si, em seus aspectos constitutivos e sob a perspectiva da técnica de sua confecção, até a relação estabelecida com o homem ao longo da história, passando pelos símbolos e concepções a ele vinculados, os quais muitas vezes ultrapassam em muito o âmbito de sua utilidade prática. Na obra de Jacob essas três abordagens se fazem presentes por conta de sua difícil dissociação prática, dado que a variação nas técnicas de panificação repercute fortemente sobre as relações que a humanidade estabelece com o objeto pão e o simbolismo que o rodeia.

Contar a história do pão é também contar a história da agricultura e dos cereais; afinal, não é à toa que ora o pão é feito de centeio, ora de trigo, ora de farinhas as mais exóticas, ou simplesmente não é feito, por falta de colheitas e instrumentos que permitam seu preparo.

Jacob dá conta dessa empreitada valendo-se de toda sua erudição de homem de letras alemão, e da articulação expressiva que suas incursões pela literatura de ficção lhe dotara. Muito embora siga uma firme linha cronológica desde a Pré-história até o século XX, abrangendo inúmeros aspectos técnicos concernentes ao objeto de seu estudo, não permite que a narrativa seja reduzida a um mero elenco de fatos sucessivos, ou a digressões que se espera encontrar em manuais de agronomia; antes arranja-os num esquema biográfico bastante vívido, o qual não emprega à força como um instrumento lúdico sobre uma base árida e infensa a fabulações, mas sim como o único possível dada a força e pungência do protagonismo do próprio pão na história da humanidade. Trata-se, como diz o trecho do início, de revelar a resistência implacável que o objeto oferece à vontade humana de dominá-lo.

Para os fins deste texto, seria um pouco enfadonho e inútil tentar resumir a história do pão atendo-me cronologicamente aos principais fatos. Nesse sentido, o caudaloso livro de Jacob já é um resumo dessa trajetória tão extensa e variada. Portanto lanço-me à tarefa de explicitar alguns pontos que mais chamaram minha atenção e que podem ser do interesse do leitor.

É impressionante como a história da agricultura, sobretudo na Europa, consiste principalmente numa história da inabilidade dos europeus com o trato da terra. Nós, homens contemporâneos e urbanos, tendemos a pensar no passado de nossos ancestrais, em especial o passado mais longínquo, como um tempo de pessoas vivendo no campo e lidando diretamente com a terra; de certa maneira, essa visão está correta, pois de fato as populações eram bem maiores na zona rural do que na zona urbana, e muitos se dedicavam à agricultura; porém, essas circunstâncias não implicam automaticamente a existência de um conhecimento da técnica agrícola que permitisse a efetividade do cultivo, além de deixarem de fora diversas e importantes exceções. Os gregos, Jacob nos diz, por muito tempo negligenciaram a agricultura, e foi só com a introdução do culto a Deméter e dos mistérios de Elêusis que houve uma maior atenção a essa seara. Os romanos, ao longo do desenvolvimento do seu Império, permitiram a inviabilização do cultivo efetivo das terras da Península Itálica, de modo a privilegiar o fornecimento de grãos por parte dos territórios dominados às margens do Império. Os povos bárbaros e, mais tarde, os muçulmanos, não viam com bons olhos a agricultura, pois representava uma excessiva devoção e vinculação à terra, em prejuízo de suas ambições guerreiras e hábitos nômades. Com o fim do Império Romano, a situação se agravou, pois em virtude de uma série de fatores os conhecimentos agrícolas produzidos pela Antiguidade se perderam, de tal forma que, apesar de haver muitos camponeses e o Feudalismo estar estreitamente associado ao cultivo da terra, a agricultura que se praticava era extremamente rudimentar, não sendo capaz de manter as populações europeias continuamente saciadas. Na Idade Média, outro fator que atrapalhava eram as instituições políticas, que tornavam a lida agrícola ainda mais ineficiente; o domínio do suserano sobre as florestas e as restrições sobre a propriedade e uso dos moinhos dificultavam o aquecimento e a produção de farinha, tornando ainda mais difícil a sobrevivência do camponês. Mais tarde, as revoltas camponesas tentaram subverter esse estado de coisas, mas sem sucesso; ao final, o que conseguiram foi reforçar ainda mais a indisposição que as classes dirigentes já nutriam contra o campesinato. Mesmo na Idade Moderna há equívocos crassos em relação à agricultura: Napoleão, por exemplo, privilegiava a indústria em detrimento da agricultura, e essa preferência lhe custou um alto preço quando da campanha contra a Rússia, em que a falta de pão constituiu fator decisivo na derrocada de seu exército. Foi só no curso do século XIX, ou seja, há muito pouco tempo nessa história plurimilenar do pão, que a Europa passou a dar uma atenção mais séria e continuada à agricultura e ao problema do abastecimento, muito por força das descobertas químicas e botânicas e da mecanização do campo; outro fator decisivo foi o desenvolvimento espetacular da agricultura nos Estados Unidos, o qual, além de importar o avanço daquelas técnicas, levou a Europa a perceber a importância de pensar estrategicamente e a longo prazo seus problemas de abastecimento.

Num livro tão abrangente sobre a história do pão, era de se esperar que Jacob fosse se demorar em algum momento na Eucaristia, Cristo feito Pão dos Homens. E, com efeito, Jacob o faz mais de uma vez, falando de Cristo em seu próprio tempo e da agricultura e do pão entre os judeus; depois contando sobre a as disputas teológicas medievais entre simbolistas e realistas, que culminou na declaração do dogma da transubstanciação, isto é, da real transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo; e, por fim, relatando que, mesmo entre os protestantes, não houve consenso em torno da ideia simbolista, sendo Lutero o principal defensor, no contexto da Reforma, da doutrina que, nesse particular, também era a católica. Entretanto, o que mais despertou meu interesse, até mesmo pela novidade que constituiu para mim, foi o relato sobre os mistérios de Elêusis, que guardam profunda correspondência com a história salvífica de Cristo, e por isso se tornaram um dos principais adversários dos apologetas cristãos nos primeiros tempos do Cristianismo. Em determinado momento da história da Grécia Antiga, firmou-se ali o mito de Perséfone e Deméter, segundo o qual Perséfone, filha de Deméter, deusa da agricultura, foi raptada por Hades, deus dos Infernos, e por ele levada ao mundo inferior, onde se casou e, por comer determinado fruto, ficou condenada a nunca mais sair daquele lugar definitivamente. Deméter, extremamente abalada pelo acontecido, deixou de estender aos homens suas benesses agrícolas, de modo que o abastecimento restou sensivelmente prejudicado. Os outros deuses, conscientes da impossibilidade de que aquele estado de coisas perdurasse sem maiores danos, finalmente conseguiram estabelecer o arranjo de acordo com o qual, em determinada época do ano, Perséfone ficaria junto de sua mãe, e, em outra, junto de seu marido, no mundo inferior. Aos períodos de convivência e ausência entre mãe e filha corresponderiam as estações do ano, respectivamente as de abundância e calor e as de carestia e frio, estações essas que demarcam pontos importantes do calendário agrícola. Em torno desse mito se estabeleceu um culto de mistérios extremamente importante em Elêusis, e a ele se vincularam diversos motivos agrícolas. Porém, como conta Jacob, a ideia de que a semente, a fim de germinar e florescer, assim como Perséfone, precisa primeiro ser “submergida” na terra, ou seja, no mundo inferior, logo foi associada ao próprio ciclo de vida do homem, em que à morte e ao sepultamento pode-se esperar que advenha a ressurreição. Em outras palavras, os mistérios de Elêusis e sua metáfora agrícola mostravam fortes semelhanças com a morte e ressurreição de Cristo para a remissão dos pecados e vida eterna dos homens, e por isso eram vistos pelos primeiros cristãos como ameaça à fé nascente, muito mais do que outros mitos greco-romanos, que pouco tinham a ver com o cerne dos Evangelhos.

A relação entre a religião e o pão vai muito além dos mitos de Elêusis e da Eucaristia. O decreto divino no Gênesis de que Adão e Eva, após a Queda, precisarão trabalhar a terra com o suor do seu rosto para obter o pão de cada dia de certa forma estende através dos séculos uma nuvem de desalento, que ora serve para estigmatizar os camponeses, que mais proximamente se vinculavam a essa “condenação”, ora para impedir que povos guerreiros e intrépidos, muito ciosos de sua independência, deixassem-se tornar cativos da terra e dos ciclos agrícolas. Outro traço persistente na história humana, verificável em povos os mais diversos, é o temor que cerca a “violação” da natureza mediante o cultivo. O domínio sobre os elementos que a agricultura implica parecia a muitos uma conspurcação da terra, da água e do vento, além de uma verdadeira afronta aos deuses que os regiam. Por isso, a agricultura, quando se mostrava indispensável, era cercada de inúmeros rituais e sacrifícios destinados a aplacar a ira divina. De outra parte, a transcendência também servia aos propósitos da agricultura: os mitos, os rituais e as orações constituíam formas de conservar o conhecimento de técnicas agrícolas relevantes, impedindo que os homens dele se esquecessem e impelindo-os a continuar na lida com a terra de modo a manter as provisões indispensáveis à subsistência. Os sacerdotes, inclusive por conta da parcela de ócio de que podiam desfrutar, foram às vezes protagonistas da evolução agrícola, sendo disso exemplo recente o trabalho do monge Gregor Mendel, que nos jardins de sua abadia fez nascer os estudos da genética, os quais permitiram que a manipulação das plantas obtivesse êxitos capazes de aumentar significativamente a produtividade dos campos e a extensão das terras agricultáveis.

De certo modo, o trigo foi sempre um personagem principal na história da panificação. Todavia, também o sorgo, a cevada e a aveia desempenharam seu papel, sobressaindo-se dentre eles o centeio, que persistiu como principal ingrediente dos pães germânicos e eslavos até recentemente. Jacob passeia pela história de todos eles, e também não deixa de falar do milho e da batata, os quais, trazidos do Novo Mundo à Europa a partir do século XV, transformaram os hábitos alimentares e, em alguns momentos, evitaram que a fome dizimasse um sem número de pessoas. As preferências por um ou outro cereal no fabrico do pão oscila bastante ao longo da história, nelas interferindo diversos fatores, especialmente preconceitos. Por muito tempo resistiu-se a comer aveia porque aquele era um cereal destinado aos cavalos. Nos conflitos europeus do século XVIII, o pão escuro e forte feito de centeio era usado pelos povos germânicos como elemento identitário, em contraposição ao pão branco dos franceses, feito de trigo. Os franceses, por sua vez, se viram em maus lençóis por privilegiarem sobremaneira o trigo, pois, diferentemente dos italianos, quando o trigo escasseava, não podiam recorrer às massas feitas de milho ou batata; dito de outro modo, os franceses não apreciavam o macarrão e o nhoque que os italianos aprenderam a preparar. Essa pulsão atávica dos franceses pelo trigo, contudo, não era um dado desde sempre existente: foi fruto da Revolução Francesa, em cuja dinâmica a popularização do pão branco dos nobres, feito de trigo e sem muito farelo, representou uma grande conquista na consecução da igualdade entre os homens.

A história do pão branco e sem farelo, em particular, é bastante curiosa, pois contém idas e vindas. A princípio, o pão dos camponeses era extremamente rude e escuro, pois a ele se misturavam farinhas de origens diversas a fim de engrossar a massa, enquanto que o próprio trigo ou centeio, em função da precariedade dos moinhos e da “esperteza” dos moleiros, não era completamente esmagado, o que resultava em muito farelo e coloração escura. Logo, é natural que as classes pobres aspirassem a um pão mais claro como consequência do emprego de uma melhor técnica de panificação. E de fato o desenvolvimento da mecanização da agricultura e da panificação importou o melhor esmagamento do grão, uma quantidade menor de farelo e outras farinhas exóticas para engrossar a massa, e, por fim, um pão mais claro, leve e aerado. No entanto, no começo do século XX, os norte-americanos começaram a se perguntar se, nesse completo esmagamento e peneira do grão, não estavam indo embora as partes mais nutritivas do alimento. Esse movimento ganhou grandes dimensões, de modo que o pão escuro voltou a obter a simpatia de alguns, ao passo que, ao pão branco, tornou-se praxe a adição de compostos químicos que reconstituíssem, ainda que parcialmente, o valor nutritivo original. Em termos de técnica, o livro de Jacob para por aí; mas é interessante notar como o autor foi feliz ao fazê-lo, pois, em verdade, essa é uma discussão que se prolonga com força até os nossos dias, sendo pauta constante das publicações populares e científicas a questão dos malefícios dos carboidratos e do glúten, assim como a da necessidade de voltarmos a dietas menos baseadas em grãos, ou ao menos baseadas em cereais integrais e sem glúten. A questão do glúten, em particular, está estreitamente associada à manipulação histórica do trigo de modo a obter plantas mais produtivas e resistentes.

Os pontos assinalados são apenas uma pequena parcela dos inúmeros fatos relatados e ideias desenvolvidas por Jacob em sua obra magistral. Em nenhum momento o autor precisa pesar a mão a fim de conferir à história do pão uma repercussão maior do que a que apresenta efetivamente. O oposto, isto sim, é verdadeiro: a pesquisa da história do pão revela por si só e incontestavelmente a importância e impacto desse alimento sobre a vida biológica, política e espiritual da sociedade humana. E não poderia ser diferente: no “pão nosso de cada dia” está a soma do suor derramado do rosto humano, dos ciclos da natureza e da providência divina que anima a ambos.

*Registro meu agradecimento especial aos queridos amigos Edna Malta e Almasta Dhyan, os quais gentilmente me presentearam com este livro há alguns dias, despertando assim imediatamente a curiosidade para um tema que tanto os fascinara.

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