Metrópole à Beira-Mar - o Rio moderno dos anos 20, de Ruy Castro



De fato, não vale a pena fiar-se na primeira impressão. Há alguns anos, a editora Penguin-Companhia lançou uma excelente edição de Frankenstein, de Mary Shelley; como costuma acontecer com as melhores produções da Penguin, Frankenstein contava não só com uma excelente tradução, mas também com um farto aparato crítico. À época, fiquei muito impressionado com a profundidade e riqueza da narrativa criada por Shelley quando ainda era bem jovem; os textos de apoio só ajudaram a enfatizar minhas impressões, estendendo as implicações filosóficas e existenciais da trajetória de Frankenstein; tudo ia em ótimo passo até que me deparei com um texto escrito por Ruy Castro a respeito da obra: seu tom pedestre, de revista de fofoca, com o qual elencava anedotas a propósito de Shelley e sua obra, contrastava fortemente com a elevação da leitura e dos demais textos críticos; fiquei decepcionado, considerando aquela performance do escritor brasileiro uma verdadeira mancha na que, não fosse isso, seria uma edição perfeita. Há algumas semanas, porém, recebi a notícia do lançamento de Metrópole à Beira-Mar, do mesmo Ruy Castro, livro que trata do Rio de Janeiro dos anos 20. Já sabia que Castro escrevera ao menos um outro livro sobre o Rio de Janeiro. Como o assunto me interessasse, e o livro fizesse sucesso, “sugeri” à minha mãe que me presenteasse com ele, o que ela fez, de modo que, às vésperas do Natal, vi-me com um calhamaço de quase quinhentas páginas em mão, quinhentas páginas de Ruy Castro, autor cujo primeiro contato fora tão infeliz. Devorei as quinhentas páginas em poucos dias, e agora mal posso esperar por ler todo o restante da - vasta - obra de Ruy.

O Rio de Janeiro é uma paixão relativamente recente. Até alguns anos atrás, tinha verdadeira ojeriza pela cidade, pelo sotaque dos cariocas e por tudo que se relacionasse a sua celebração como cidade maravilhosa. Sem saber bem por que, a vida tratou de me aproximar da cidade, e de aproximação em aproximação vi-me primeiramente interessado pela cidade, depois um visitante habitual e, agora, posso dizer, um aficionado por tudo que a ela se relacione.

Metrópole à Beira-Mar tem o trunfo de não só tratar do Rio, como também do Brasil dos anos 20, dado que o Brasil, nessa época, confundia-se em grande parte com a capital federal. E o Brasil das primeiras décadas do século XX é um céu constelado, pululando de artistas, intelectuais, cultura e acontecimentos de todo tipo. Não foi por outro motivo, aliás, que me apaixonei pela saga memorialística de Pedro Nava, que é uma verdadeira janela para a intimidade do Brasil daquele tempo. A saga de Nava me fez ser brasileiro de um jeito diferente, deu substância ao muitas vezes leviano orgulho nacional, e esse foi por certo um passo decisivo para que, posteriormente, pudesse amar o Rio.

O foco principal de Ruy, como o revela o próprio título, é o Rio de Janeiro dos anos 20. Dentro desse recorte, de tudo ele fala - e muito aconteceu naquela época -, no entanto fala principalmente da cultura de então, e igualmente aqui pode-se dizer que muito aconteceu naquela época.

Na literatura, há o protagonismo de nomes como Lima Barreto, Coelho Neto, Benjamin Costallat, João do Rio, Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho. Eram tempos ecléticos aqueles: muito do passado persistia, certo beletrismo, os últimos parnasianos e simbolistas, contudo, já havia muita gente moderna, de escrita arejada e ágil, movendo a locomotiva da literatura adiante. Apesar de ser um livro sobre o Rio, Ruy Castro não se furta a falar da Semana de Arte Moderna de 22, muito paulista mas com participações cariocas pontuais, nomeadamente Di Cavalcanti e Villa-Lobos; das relações de seus dois grandes nomes, Mário e Oswald de Andrade, com os cariocas; e do quanto o modernismo propugnado em São Paulo, diferentemente do que lá acontecia, não era grande novidade no Rio de Janeiro daquela década. Ainda no âmbito da literatura, surpreendem os relatos sobre a forte presença feminina nas letras. Havia um número razoável de mulheres escrevendo nos jornais e revistas cariocas; muitas delas davam o próximo passo, publicando poesia e romances. Nome cujo resgate se esboçou nos últimos anos, Júlia Lopes de Almeida, segundo Ruy, era figura central das rodas literárias de então, tendo seus esforços sido essenciais para a fundação da Academia Brasileira de Letras, a qual só não integrou porque era mulher, e a academia francesa, modelo da brasileira, não admitia mulheres. Outras escritoras destacadas são Carmen Dolores, Gilka Machado (poetisa de feitio erótico) e Chrysanthème. Que tenham sido esquecidas depois, prolongando-se o esquecimento até o nosso tempo, depõe muito contra o tempo atual, e, por consequência, em favor dos cariocas de antanho. Por vezes, a modernidade é um capítulo que antecede a antiguidade.

A pujança das letras em geral é um capítulo à parte, o qual impressiona neste tempo de crise dos periódicos de todo tipo. Os jornais abundavam de manhã, à tarde e à noite. Revistas e mais revistas, com variados temas, concorriam entre si pela atenção do leitor. O número de editoras não era tão grande, mas as que havia eram sólidas e publicavam bastante. Muitas -  e grandes - eram as livrarias.

Das letras se passa ao teatro, e do teatro, à música. Ruy descreve demoradamente a cena teatral daquela época; a importância do teatro de revista, gênero popular e ligeiro que levava multidões às salas de espetáculo; e as tentativas de tornar a dramaturgia nacional mais densa, seja com o teatro de brinquedo, seja com o teatro dos negros. Foi naquela época que surgiu o célebre Procópio Ferreira. O teatro se confundia com a música, e, na música, muita coisa acontecia. O Rio oferecia um cardápio para todos os gostos. Por aqui passavam as grandes companhias de ópera e música clássica internacionais. O samba começava a se insinuar e firmar como gênero musical independente de outros, como o maxixe. Os sons norte-americanos e suas danças invadiam a cidade. Prestava-se atenção aos sons locais, às tradições do povo, ao folclore; Villa-Lobos sintetizava em alto nível essa pesquisa, levando sua produção de ponta ao exterior. O carnaval dava um passo para além dos blocos, que muitas vezes terminavam em brigas, transformando-se em escola de samba com carro abre-alas, baianas, desfile e tudo o mais que conhecemos.

Capítulo pitoresco da história dos anos 20, o rádio nasceu no Brasil nas mãos da ciência e, mais particularmente, nas de Roquette-Pinto. Roquette desejava a princípio que o meio de comunicação fosse voltado à educação e cultura do povo; havia circunstâncias que o envolviam que realmente recomendavam essa utilização. Todavia, logo o rádio se popularizaria de modo a devotar-se a finalidades menos pedagógicas.

Concretamente, o Rio se transformava. O morro do Castelo fora posto abaixo, a exposição universal feita em seu lugar foi um sucesso, tentava-se disciplinar o crescimento da cidade pelas mãos do pai do urbanismo moderno, arranha-céus eram erguidos, descobriam-se as praias, erguia-se o Copacabana Palace e, mais emblemático no que se refere ao Rio de Janeiro, o Cristo Redentor era esculpido no topo do Corcovado. Castro nos conta sobre a ascensão de uma intelectualidade católica organizada, capitaneada por Jackson de Figueiredo, que passou a exercer grande influência no debate público da época. Um dos frutos dessa ação organizada foi justamente a construção do Cristo Redentor, ideia que vinha de outros tempos sem se concretizar. Alceu de Amoroso Lima sucederia Jackson e exerceria fortemente essa influência católica sobre a intelectualidade das décadas seguintes. Ainda no campo do catolicismo, causam surpresa as considerações de Castro acerca da piedade de Mário e Oswald de Andrade: como na época existisse o Index de Livros Proibidos, Mário solicitava ao vigário-geral da Arquidiocese de São Paulo permissão para ler determinados títulos.

Nas artes plásticas, havia certa dificuldade em deixar de ser cartunista para virar exclusivamente artista de quadros e esculturas. Como os periódicos fossem vários, logo que alguém exibia dotes para o desenho era cooptado para atuar como cartunista, ofício que deveria desempenhar em profusão de trabalhos. Abundavam grandes cartunistas. Muito se fala no livro, entretanto, da figura onipresente de Di Cavalcanti, assim como da mais misteriosa e enigmática de Ismael Nery.

Sendo o Rio metrópole à beira-mar, nada mais natural do que recebesse visitantes ilustres vindos do estrangeiro. Ruy Castro conta ao leitor das esquecidas e surpreendentes viagens de Albert Einstein por oito dias pelo Rio, e de Marie-Curie, de quarenta dias; havia nelas um esforço de integração da ciência nacional às descobertas conduzidas no estrangeiro. Também visitou o Brasil o casal real da Bélgica, naquela que foi uma viagem tratada com o maior cuidado - mas não sem peripécias - pelo governo brasileiro, a fim de impressionar. O futebol, visitante inglês, dava seus primeiros e largos passos rumo à dominação nacional; os primeiros clubes começavam a surgir, mas tudo era ainda permeado de um convicto amadorismo. O cinema também se espraiava, a Cinelândia era construída, mas muitos ainda viam com desconfiança aquela nova forma de espetáculo. Também o cinema nacional tentava dar seus primeiros passos.

Além das obras do espírito e de concreto, Ruy não deixa passar em branco as mudanças nos costumes. Surge a melindrosa - inclusive na capa do livro -, mulher de trajes desinibidos e perfil arrojado. A droga fartamente consumida era a cocaína.

Conquanto sejam muitos os pontos destacados do livro, muito deixou de ser dito: Metrópole à Beira-Mar é um verdadeira torrente de informações, nomes e fatos. Ruy Castro, no entanto, jamais permite que o texto se transforme numa sucessão enfadonha, como numa lista telefônica; seu texto objetivo e claro é bem sucedido em amarrar todas as informações de forma interessante, que não leva o leitor ao enfado em nenhum momento. O trabalho de pesquisa de Ruy é admirável: poucos conseguiriam mergulhar sem se perder em tamanha profusão de acontecimento distantes. A edição homenageia esse esforço ao não prescindir de bibliografia, discografia e índice remissivo; dessa forma, vale não apenas como leitura de entretenimento, mas também como instrumento de pesquisa.

Abundam os chavões em torno da importância do conhecimento histórico. Embora sejam chavões, não são por isso menos verdadeiros. A “biografia” do Rio dos anos 20 é uma prova retumbante de que o Brasil não é uma terra de ninguém: não saímos das caravelas de Cabral direto à pasmaceira atual; é certo que há nações muito mais desenvolvidas política, econômica e culturalmente; entretanto, já demos muitos passos, o problema é que muitos deles foram esquecidos recentemente. Urge aproveitar os esforços de Ruy Castro e não se esquecer mais de tantos nomes relembrados por ele. Aprofundar em bases sólidas o conhecimento da obra de Júlia Lopes de Almeida pode ser um ótimo começo.

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