A Carta - para entender a constituição brasileira



A Carta, lançado recentemente pela Editora Todavia, é uma exceção improvável no mercado editorial brasileiro: exceção porque trata da Constituição da República de 1988 tendo em mira o público leigo, e não para debatê-la segundo os termos e problemas do Direito Constitucional, mas sim para informar-lhe os resultados práticos desse documento político; improvável porque o Brasil é historicamente uma nação de bacharéis em Direito, com farta produção editorial jurídica, logo, era de se esperar que toda essa reserva de conhecimento transbordasse de algum modo para o público leigo.

A Carta tem o mérito de tratar de vários pontos polêmicos suscitados pelo texto constitucional que alimentam o debate público cotidianamente sem induzir o leitor a adotar certas respostas dentre as disponíveis, o que possibilitaria, por exemplo, classificar o livro dentro do espectro ideológico que vai da esquerda à direita. Nesse sentido, é bastante objetivo, limitando-se a entregar aquilo que aconteceu depois e por causa da Constituição mediante dados e estatísticas: o que cada um fará depois com esses dados, quais conclusões extrairá, é ponto com o qual o livro (acertadamente) pouco se preocupa. Num ambiente polarizado como o da sociedade brasileira atual, em que posições são assumidas e propostas feitas tomando preconcepções desinformadas do texto constitucional como premissas, A Carta tem um forte efeito saneador, estabelecendo um pano de fundo realístico para o debate e esclarecendo aqueles - leigos principalmente - que sequer têm preconcepções sobre o tema.

Dividida em capítulos escritos por diferentes especialistas, a obra é inaugurada pelo capítulo que é também seu ponto alto: Rogério Arantes e Cláudio Couto falam do nosso histórico de constante reforma da Constituição por meio de emendas; fazem-no, contudo, de um jeito novo, sem olhar para esse fenômeno como algo necessariamente ruim e representativo de uma falha intrínseca do nosso modelo constitucional, mas sim o aclarando mediante fatos, estatísticas e Direito comparado, chegando ao final à espantosa - e convincente - conclusão de que essa nossa característica peculiar é um trunfo que nos garante uma maior longevidade das instituições mais fundamentais do nosso pacto social.

Na sequência, Marta Arretche fala dos áridos mas relevantíssimos temas da repartição das receitas públicas e transferência de receitas entre os entes federativos. Na hora "H", é essa estrutura fundamental do Estado brasileiro que determina o sucesso ou o insucesso das políticas públicas, a efetividade ou não da redução da pobreza e das desigualdades sociais e regionais. O texto de Marta ganha especial interesse quando apresenta estatísticas que revelam o quanto as transferências constitucionais têm alcance limitado na distribuição de recursos na medida em que se baseiam na população, e não em seu grau de vulnerabilidade social. Também chamam a atenção as conclusões de que as transferências voluntárias - as famosas "emendas parlamentares" - não têm tanta relevância no quadro geral do custeio da máquina pública, e de que a vinculação de receitas pode ser o único instrumento que impossibilita que as transferências dos entes políticos mais ricos para os mais pobres não se tornam transferências para as pessoas mais ricas dentro da população dos entes pobres.

O capítulo sobre o Poder Judiciário talvez seja o menos interessante: trata de forma pouco surpreendente de um assunto que já foi muito discutido, inclusive fora do ambiente jurídico, e, ao mesmo tempo, não traz grandes insights que permitam entrever soluções para os problemas atuais. De todo modo, é interessante o histórico da evolução e expansão das instituições do sistema de justiça depois de 1988, seguido das consequências desse desenvolvimento e maior capilaridade. Também digno de nota é o apontamento sobre a importância para a segurança jurídica da observação dos precedentes jurisprudenciais em nível horizontal, ou seja, por um juízo em relação a sua própria produção anterior.

A seção dedicada à educação nos esclarece bem a situação existente em 1988 e como ela evoluiu em termos de universalização do acesso a partir de instrumentos constitucionais como a vinculação de receitas, a ampliação do que é a educação básica e obrigatória e a criação do FUNDEF e do FUNDEB. Algumas sugestões de enfrentamento do problema da qualidade do ensino são feitas; são, porém, sugestões pouco inovadoras em relação ao que já foi proposto por aí, soando ao leigo como insuficientes e não tão certeiras.

O capítulo sobre a assistência social é surpreendente: começa excessivamente técnico e maçante, mas depois melhora sensivelmente ao explicar como funciona o sistema de assistência social atual e quais foram as conquistas por ele alcançadas. Essas conquistas são especialmente entusiasmantes e, apesar de não fazerem crer que tudo anda às mil maravilhas, dão-nos o alento de ver que o progresso é sim possível e que já foi feito em campos importantíssimos como o da mortalidade infantil, trabalho de crianças, acesso à água e à energia elétrica, aumento do IDH dos municípios e redução da pobreza e da extrema pobreza. Muito significativa é a constatação de que tão importantes avanços foram feitos apesar de a Constituição não ser exaustiva quando aborda a assistência social, sendo muitas das conquistas determinadas mais pelo legislador infraconstitucional e pelo engajamento da sociedade do que por determinações específicas do constituinte. O livro revela, no entanto, que não é em todos os campos que essa espécia de ingerência suave da Constituição tem potencial para funcionar.

Igualmente entusiasmante é o capítulo dedicado ao SUS. Fica nítido o quão ousado - e utópico até - o constituinte foi ao prever sem maiores rodeios que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Fica do mesmo modo nítido, de outra parte, o quão bem sucedida e necessária foi essa ousadia. Apesar dos inúmeros e conhecidos problemas, as conquistas promovidas pelo SUS são reais e documentadas, e a sua própria existência, dada a grandiosidade da ideia que o ensejou, pode ser considerada um milagre. Chamam a atenção as considerações sobre o problema do subsídio público ao sistema de saúde suplementar (privado) via renúncia fiscal (deduções do imposto de renda), assim como aquelas sobre a vulnerabilidade do SUS frente ao cenário futuro, em que o envelhecimento da população aumentará a demanda por procedimentos mais numerosos e especializados, cuja oferta e custo, por outro lado, só fazem aumentar com o avanço da ciência médica.

O tema do trabalho é abordado a princípio de forma tradicional e pouco estimulante para o leitor a ele afeito de algum modo, mas depois de forma mais cativante e interessante. Destaca-se a constatação de que o nosso sistema estimula a solução dos problemas da relação de trabalho por instrumentos externos a ela, inflacionando assim a atuação da Justiça do Trabalho e estimulando a rotatividade dos trabalhadores, o que, por sua vez, diminui a produtividade e desestimula o investimento das empresas no capital humano. Outro ponto clamoroso é a incapacidade do sistema constitucional de diminuir de forma relevante o percentual de trabalhadores informais e por conta própria, melhorando assim sua condição pela formalização - impressiona que os percentuais se mantenham estagnados ao longo dos últimos trinta anos, quando muitos outros em diferentes áreas sofreram alterações positivas relevantes, e que ainda haja certo fatalismo nesse campo, pois quem começa um trabalhador informal dificilmente se tornará um trabalhador formalizado no futuro.

Por fim, o capítulo dedicado à previdência social atrai a atenção do leitor em virtude da atualidade e premência óbvias da matéria. É uma seção muito bem escrita e informativa; traz esclarecimentos importantes sobre os motivos do déficit do regime de previdência dos servidores públicos; pontua - o que é pouco dito -, que a adoção do fator previdenciário não surtiu efeitos na postergação da aposentadoria do trabalhador comum, pois este historicamente tem preferido benefícios precoces, ainda que menores; porém, falha ao enfocar a questão previdenciária quase que exclusivamente sob o ponto de vista da crise do seu custeio. Aqui foi perdida a oportunidade de, na esteira dos outros capítulos, fazer-se um inventário objetivo dos resultados sociais da política previdenciária constitucional, vale dizer, do eficaz enfrentamento das contingências e eventos imprevistos da vida que a previdência busca cobrir. Falta ao leitor-cidadão brasileiro o estabelecimento fiel desse quadro, de modo que os ajustes fiscais e mudanças nos planos de custeio e de benefícios possam ser feitos com a consciência de qual é a razão de ser da previdência social e de quais seriam as consequências no pacto social de sua mitigação, sejam justificáveis ou não as razões desta.

Enfim, este é um livro imprescindível a quem deseja ser um cidadão consciente hoje. O debate público brasileiro está emoldurado pelas escolhas feitas pela Constituição de 1988 e por suas sucessivas emendas. Não importa a visão ideológica, o material de trabalho de qualquer agente político hoje é a Constituição, ainda que seja para propor sua superação por um novo movimento constituinte. Debater publicamente sobre ela ou a partir dela sem conhecê-la é trabalhar com chavões e preconceitos ao invés de dados e realidade: é desinformar e aprofundar os problemas existentes. Também é certo que A Carta é uma valiosa ferramenta na iluminação do debate público ao permitir que a Constituição seja abordada a partir dos seus resultados, e não só a partir de modelos ideais e abstratos, próprios do Direito Constitucional e das ideologias políticas. Somente a partir do exato conhecimento dos fatos a sociedade brasileira poderá decidir se vale ou não a pena conservar nossa experiência constitucional recente.


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