Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues

Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues

Toda Nudez Será Castigada é uma obra especialmente amarga na dramaturgia de Nelson Rodrigues. Não obstante o conjunto seja marcado por elementos grotescos e chocantes que conduzem o leitor à descrença na bondade humana, aqui não resta qualquer saída ou sinal de esperança, uma moral capaz de promover a pacificação entre o corpo e a alma. Na esteira do luto pela morte da esposa do protagonista, as personagens são colocadas num labirinto e obrigadas a lidar com as consequências do desejo sensual; porque nenhuma tentativa se mostra eficaz, parece caber ao leitor se resignar com a impossibilidade da felicidade terrena, aspirando a uma vida melhor em outro plano. Conquanto realizada esteticamente com maestria, a obra deixa um sentimento de frustração, desistindo da moral sem comunicar qualquer lição.

O enredo da peça parte de Herculano, um viúvo que sofre com a perda da esposa, com quem teve um casamento convencional e feliz, embora sem grandes lances. Dependentes dele financeiramente, o irmão e as tias estão preocupados com a possibilidade de que tire a própria vida. Já o filho sente ainda mais profundamente a perda da mãe, entregando-se a comportamentos mórbidos e se exacerbando na recusa ao sexo, a ponto de exigir do pai uma viuvez completamente casta.

Patrício, o oposto do irmão no que se refere ao comportamento, chega à conclusão de que o que falta a Herculano é mulher, e por isso decide convocar a prostituta Geni para resolver o problema do outro. Com óbvias resistências de Herculano, Patrício acaba conseguindo atingir seu objetivo, de modo que o viúvo desenvolve uma paixão ardente pela moça. Geni, por sua vez, não se limita a prestar os serviços de prostituta, e também se envolve emocionalmente. Antes secreta, a relação se torna pública, e o castíssimo Serginho é obrigado a lidar com a madrasta, o que faz guiado pelos conselhos do tio, desejoso da ruína de Herculano: vingando a traição do pai cometida postumamente contra a mãe, Serginho se envolve com Geni, apesar da castidade.

“Toda nudez será castigada” é um título adequado para uma peça em que o sexo é visto como perigoso e condenável; por um lado, expressa a circunstância elementar de que o intercurso sexual passa pelo despir-se e a entrega; por outro, indica que o perigo iminente é intrínseco à condição humana, na medida em que a nudez, passo anterior ao ato sexual, é o estado natural da humanidade, ao qual jamais poderá se furtar por completo. Previsivelmente, uma tal visão deforma a sexualidade, tingindo-a de histeria.

Dois extremos polarizam a peça: o da castidade histérica e o da licenciosidade errante. Herculano, Serginho e as tias formam o primeiro grupo; Patrício e Geni, o segundo.

Católico de rígida observância, Herculano só se permitia o sexo dentro dos limites de um casamento convencional. Seu autocontrole sempre se mostrou férreo, sequer abrindo espaço ao álcool, pois, como admite à determinada altura, uma vez bêbado, poderia se tornar assassino e incestuoso. Frequentar um prostíbulo era algo fora de cogitação. Herculano pressentia a força da própria pulsão sexual e reagia a ela com ferocidade, a fim de contê-la. O leitor percebe, no entanto, que a contenção só fazia crescer e perturbar o desejo, de tal modo que, ao primeiro gesto que invade a fortaleza de castidade que erguera - Patrício lhe mostra a foto de Geni nua -, segue-se a integral dissolução, com Herculano acordando desorientado na cama de Geni, após ali chegar bêbado e se entregar ao prazer por três dias seguidos; o extravasamento se equipara em força à repressão da libido.

Serginho tem horror ao sexo, inclusive dentro do casamento; tão logo a mãe morreu, exigiu do pai a promessa de que jamais arrumaria outra mulher.  É como se o rapaz fosse prisioneiro da visão infantil que projeta na mãe uma imagem assexuada. Em uma fala emblemática, afirma que preferia não ter nascido para que a mãe pudesse morrer virgem; é claro o caráter mórbido da sua pureza: além de ser incompatível com o próprio surgimento da vida, move Serginho a render culto à mãe mediante inúmeras visitas ao cemitério, assim como a cogitar a morte do pai acompanhada do suicídio, como recusa a um mundo em que a figura assexuada da mãe não prevalece mais. O repúdio à nudez é literal: o médico da família reclama que Serginho não levanta a camisa para ser examinado. Confrontado com a cena do pai e Geni juntos, a resposta encontrada é o crime.

Já as tias exercem a função de coro, no que lembram as três primas de Doroteia, e como estas são castas e vigilantes da sexualidade alheia. Antes de enviar as roupas à lavanderia, investigam as cuecas dos homens em busca de sinais da libido; juntam-se a Serginho na desconfiança de Herculano pelo simples fato de este ter jogado talco nos sapatos, gesto de higiene visto como sexualmente orientado; quando Serginho é hospitalizado, horrorizam-se com a hipótese de morrer e ser submetido à autópsia. O coro tradicionalmente expressa o senso comum, lembrando leitores e personagens dos deveres a serem observados; nesse caso, as tias simbolizam a herança familiar, segundo a qual Herculano e Serginho foram criados para reprimir o desejo sensual.

Aqueles que se entregam ao prazer não escapam às consequências nefastas do ato, como se não houvesse alternativa viável para o dilema entre sexo e castidade. Patrício vive livremente a vida sexual, e desse modo se associa a toda sorte de vícios: ociosidade, ódio ao irmão e manipulação dos parentes.

De outro lado, a desdita causada pelo sexo é representada por Geni sob forma mais complexa. A personagem alimenta uma visão fatalista sobre a vida, considerando-se fadada a morrer com um câncer no seio, crença reforçada pelo fato de ter sido essa a causa da morte tanto de uma tia quanto da mulher de Herculano. A doença esperada atinge justamente a parte do corpo que Geni considera a mais bonita; ao esperar que o câncer apareça no símobolo de sua sexualidade desabrida, é como se Geni, mesmo inconscientemente, fosse guiada pela máxima de que não há compatibilidade possível entre bondade e sexo.

Muito embora Nelson Rodrigues seja merecidamente recordado por seu moralismo, poucas vezes manifestou uma descrença tão absoluta no sexo como em Toda Nudez Será Castigada; em Doroteia, apesar da fobia ao sexo manifestada pelas mulheres, o leitor mais atento divisa nos fatos que provocaram o surgimento da maldição da “náusea” a admissão implícita de que é possível o exercício saudável da sexualidade contanto que esteja unida ao amor. Aqui, porém, as personagens são colocadas num labirinto sem saída: são inescapavelmente humanas e desejosas, entretanto sua humanidade é deformada de igual maneira seja pela castidade, seja pela vida mundana; nem mesmo as relações maritais são uma possibilidade em aberto - afinal, o casamento de Herculano não bastou para abrandar a sensualidade que depois explodirá diante de Geni.

Num conjunto marcado pela intenção moralizante pontuada por achados originais e iluminadores, a peça protagonizada por Herculano deixa o leitor com uma ponta de frustração. Evidentemente, não é função da literatura ensinar moral, inclusive o teatro muitas vezes perde em qualidade quando se volta a essa finalidade; entretanto, Nelson Rodrigues constrói sua ficção a partir de lições morais que encontra em situações grotescas e absurdas, de modo original e surpreendente. Ao se propor escrever uma peça valendo-se de elementos costumeiros de suas congêneres e orbitando o mesmo universo de dilemas morais, o dramaturgo cria no leitor a expectativa de que a costumeira lição moral será transmitida novamente; contudo, este não encontra nenhuma lição, e sim a profissão da inutilidade da moral. Nelson Rodrigues não parece de fato um crente no caráter intrinsecamente mau do corpo, infenso a expedientes apaziguadores, mas antes alguém que falhou na tarefa moralizante que se propusera, abandonando suas personagens de forma sádica num labirinto diabólico.

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