Perdoa-me por me Traíres, de Nelson Rodrigues

Perdoa-me por me Traíres, de Nelson Rodrigues

Com os três atos de Perdoa-me por me Traíres, a protagonista Glorinha é iniciada na vida adulta; na peça, iniciar-se na vida adulta é conhecer sem disfarces a degradação moral do entorno e a hipocrisia das aparências. O tio Raul, o outro protagonista, é o mestre que a conduz inadvertidamente no processo iniciático, seja como motivador das atitudes extremadas da moça, seja como sujeito ativo na exposição da verdade. Para Raul, expor a verdade é revelar a si mesmo e à família, comprometendo-se. Nessa perpetuação de um modo de vida degradado, Nelson Rodrigues cogita as consequências do amor impedido de ser no mundo, sugere o que seja o amor verdadeiro e liga o amor à morte, a posse à destruição.

No primeiro ato, em clima de transgressão, as colegiais Glorinha e Nair chegam à casa de madame Luba, cafetina lituana cujo bordel é frequentado por políticos e garotas de boas famílias que procuram ali um dinheiro extra. Glorinha quer entrar, mas teme o tio Raul, que é severo; Nair insiste, Glorinha entra; madame Luba, a princípio simpática, logo se impacienta e a força a decidir-se, sendo na sequência levada ao deputado Jubileu de Almeida. A cena seguinte é bizarra, com o deputado caquético disparando frases disparatadas sobre um ponto de Física enquanto se excita sozinho diante de uma Glorinha que tenta fugir.

Saindo da casa de madame Luba, Nair pede a Glorinha que a acompanhe a um médico de abortos, porque está grávida e madame Luba pagou para tirar a criança. Nair tem muito medo, e o medo se mostra justificado, porque o aborto corre mal e ela começa a morrer; entretanto, apesar da insistência da outra, Glorinha não a acompanha até o final, antes abandonando-a e voltando para casa.

No dia seguinte, já no segundo ato, Glorinha fica sabendo que Nair desapareceu. O tio também não dormiu em casa. Quando o tio chega, impede-a de ir à escola, decidido a passar a limpo o que aconteceu no dia anterior e revisar o passado até aquele momento conhecido pela sobrinha. Em reminiscências que são presentificadas através da ação cênica, é contada a história do casamento entre Judite e Gilberto, pais de Glorinha. Viviam um casamento feliz e fogoso, até o momento em que Gilberto desconfia da honestidade da esposa, bate nela, provoca um alvoroço e acaba numa clínica psiquiátrica. Depois de um tempo, estando curado, volta à esposa, que evidentemente o trai, e a perdoa, baseado numa teoria particular sobre o amor. Os parentes chegam, entre eles Raul, passam uma descompostura em Judite e reputam Gilberto de novo louco, o que os leva a mandá-lo de volta à clínica. Raul, sob o pretexto de que sozinho dará uma lição na cunhada, força-a a beber veneno e morrer, momento no qual finalmente confessa que traiu o marido com muitos, e que se arrepende mesmo é do casamento. Todavia, a versão que é contada aos outros é de que Judite se suicidou. A filha do casal desfeito passa a ser criada por Raul, que a vigia constantemente.

Ao final do relato, no terceiro ato, Raul interpela Glorinha e confessa seu duplo amor: por ela e pela mãe. Glorinha primeiro fica atônita e desnorteada;  depois, manipula o tio a partir do que aprendera, até levá-lo a beber veneno e morrer. Livre dele, seu maior obstáculo, dirige-se à casa de madame Luba a fim de viver como prostituta.

Para encontrar o cerne dessa história tão marcada pelo melodrama - e nele o que a faz transcender a uma esfera mais elevada de possibilidades e pesquisa do humano -, é preciso começar pelo arco de redenção da personagem Gilberto.

Apesar de viver um casamento feliz e fogoso com a esposa, à determinada altura Gilberto permite que a dúvida encontre passagem e o faça desconfiar da sua probidade, contra a qual só é possível levantar a frágil acusação de que se recusara pela primeira vez a repetir o ritual de tomar o banho do dia juntos. A desconfiança leva à briga, a briga, à agressão, e a agressão periga levar ao assassinato. Gilberto identifica o amor com a posse, e quando a mais tênue suspeita contra a esposa aflora, torna-se insensato e louco, a ponto de pedir para ser internado numa clínica. Se não é possível amar possuindo completamente, resta apenas a insânia ou a morte. O amor desordenado resulta no desespero da falta do amor. À primeira experiência totalizante segue-se outra, igualmente absoluta.

Quando se recupera e sai da clínica, Gilberto professa uma forma diferente de amor, capaz de sobreviver às traições do ser amado. Em resposta ao irmão Raul, que desconfia do adultério da cunhada, Gilberto explica que a loucura resulta da falta de amor. Mais tarde, como o irmão insiste no adultério, Gilberto resiste dizendo que “[a] adúltera é mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela”, e que “ninguém ama ninguém”, “ninguém sabe amar ninguém”, “[e]ntão é preciso trair sempre, na esperança do amor impossível”. Radicalizando sua concepção, Gilberto afirma que, se Judite o traiu, ela não é culpada de nada, o culpado é ele, um canalha; daí a célebre súplica - “Perdoa-me por me traíres”, seguida dos brados de que “Amar é ser fiel a quem nos trai!”, “Não se abandona uma adúltera!”.

O amor possessivo também é representado pela obsessão de Raul em controlar a vida de Glorinha. Freado pela sociedade de dar vazão aos seus sentimentos, sublima-os sob a forma de um controle cerrado sobre todos os passos da garota; quando finalmente se confessa, exige dela não só que diga frases por meio das quais revela a verdade do que pensa a seu respeito, como também que o faça com espontaneidade: a possessividade não se satisfaz em obter o que quer, antes avança sobre a própria volição do ser amado.

Outra passagem importante para a compreensão da peça é a ida de Nair à clínica de abortos. A garota está com medo da morte e, mais do que da morte, está com medo de morrer sozinha; por isso propõe um pacto a Glorinha, prontamente recusado:

Não achas legal um pacto de morte? É fogo, minha filha, fogo! Eu morreria agora, neste minuto, se… Porque eu não queria morrer sozinha, nunca! O que mete medo na morte é que cada um morre só, não é? Tão só! É preciso alguém para morrer conosco, alguém! Te juro que não teria medo de nada se tu morresse comigo!”.

A morte a dois vem igualmente associada a destemor e libertação quando Raul aceita o pacto que Glorinha lhe propõe e exclama:

E já que vamos morrer, Glória, podemos dizer tudo, um ao outro, não precisamos esconder, nem calar, podemos soltar todos os gritos, todos!

Em Perdoa-me por me Traíres, assim como em outras peças de Nelson Rodrigues, a associação entre amor e morte é recorrente, expressando-se especialmente nos pactos de morte, vistos como solução para superar as ameaças à vida e perpetuar a união. Aqui, entretanto, é possível cogitar quais sejam os pormenores dessa ligação.

A morte aterroriza as personagens, pelo que tem de desconhecido e fatal. Contudo, a morte ao lado do ser amado não inspira o mesmo temor, e às vezes se mostra até desejável, diante das ameaças que a vida traz ao amor. Amar se mostra assim uma forma de enfrentar a ameaça da morte, desafiando-a com uma aliança que se pretende capaz de superá-la. Como o medo da morte é tão intenso, e o amor a única arma disponível, os sujeitos se lançam ao amor com a sofreguidão de quem busca sobreviver; por isso se inclinam à possessividade, pressentindo a importância fatal que a união tem; e quando o objeto amado ameaça a ligação, ou sequer aceita dar-lhe início, a reação é extremada como o medo da morte e equivalente em absoluto à possessividade totalizante - só resta destruir esse ser.

O amor possessivo se esquece de que os amantes são seres falhos e imperfeitos, e que esperar do outro integridade é pôr desde logo o amor a perder. Por isso Gilberto aprende que o amor, tão necessário para enfrentar a morte, deve tudo perdoar, pois só assim resistirá às vicissitudes da vida. Nessa atitude, ele não só reconhece a falibilidade da esposa, como também a sua própria, pois se ela o trai, é porque ele não é um amante perfeito, incitando na parceira a busca incessante por essa contraparte sem falhas; sendo assim, é natural que lhe peça perdão por traí-lo.

Segundo essa visão, Judite está num patamar moral superior e merece ser perdoada porque sua traição é a busca de um amor perfeito, impulso legítimo quando se tem em vista que com o amor se enfrenta a morte. Por sua vez, Gilberto se encontra num patamar moral ainda mais elevado quando comparado a Judite, porque obteve o conhecimento de que o amor perfeito é impossível entre humanos falhos, sendo as traições fadadas ao fracasso desde o princípio. 

Se a adúltera Judite é mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela, Raul é sobremaneira impuro na medida em que o amor nele apodrece desde sempre, frustrado por não ser amado pela esposa, louca e reduzida ao silêncio de uma frase única; pela cunhada, interditada pelas convenções sociais e a ausência de correspondência; e pela sobrinha, do mesmo modo impedida. À frustração de amar de Raul segue-se a alienação da esposa, o assassinato da cunhada e a violência contra a sobrinha.

É possível avançar a hipótese de que, para Nelson Rodrigues, o amor nasce da fragilidade do homem diante da morte, desenvolvendo-se de modo precário entre seres falhos, pelo que sua condição de existência é a aceitação da falha do outro, movida pela busca ilusória de um amor impossível que fulmine por completo o medo de morrer. Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma compaixão na mortalidade. Por outro lado, quem não se torna consciente desse modo de ser precário, termina na possessividade destrutiva resultante do desejo reprimido ou insatisfeito; nesse sentido, as convenções burguesas, severas contra a traição e infensas ao perdão, criam uma sociedade hipócrita e violenta.

Em meio a essa hipótese, uma constatação do dramaturgo se insinua: não obstante os melhores esforços, morre-se mesmo é sozinho. Diante das ameaças de Raul, e não obstante ter buscado o amor libertador ao longo da vida - em tentativas falhas, porém representativas de uma busca legítima -, Judite escolhe encarar a morte sozinha, bebendo finalmente o veneno que o cunhado lhe impinge. Não é de outra maneira que age sua filha, iniciada que foi às glórias e deformidades da vida adulta: diante de ameaças semelhantes, escolhe a morte previsível decorrente da prostituição, antes preferindo morrer sozinha a ter que morrer acompanhada por Raul como vítima de seu amor louco. Ambas são heroínas trágicas que procuram estar à altura da sua condição mortal, sem subterfúgios. Também Gilberto é um herói trágico, pois é encerrado numa clínica psiquiátrica ao decidir aceitar a falibilidade humana e por isso perdoar as traições. Amar é tentar não morrer sozinho; já amar bem é aceitar tanto não ser amado de volta quanto não morrer acompanhado. O verdadeiro amor redime porque abre o ser humano à inescapabilidade da falha, detendo-o na tentação do absoluto - posse e destruição.

Justamente qualificada pelo dramaturgo como tragédia, a peça, no entanto, não se reduz à aceitação passiva do destino horrendo dos seus heróis: loucura, morte e prostituição. Nas entrelinhas dos diálogos, a possibilidade de um amor paciente que aceita a falibilidade humana se mostra viável e desejável. A encenação, desse modo, serve como advertência contra a perpetuação da destrutividade social pelo público, intolerante à falha e pouco propenso ao perdão. Como no restante da dramaturgia rodrigueana, atrás do escândalo e do insólito, esconde-se uma intenção moralizadora original e surpreendente.

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