Anti-Nelson Rodrigues, de Nelson Rodrigues

Anti-Nelson Rodrigues
A história de sedução contada em Anti-Nelson Rodrigues se diferencia da dinâmica usual do teatro do seu criador por apresentar uma protagonista íntegra, bravamente resistente na defesa dos seus valores contra as tentativas que fazem para desencaminhá-la. Ao contrário do que parece, porém, a obra não constitui um ponto de dissonância dentro do conjunto que integra; antes evidencia de forma original o que para Nelson Rodrigues é o amor capaz de resistir às tentações que tentam destruí-lo, no que ecoa episódios de peças anteriores.

O enredo de Anti-Nelson Rodrigues é simples: de um lado, a família rica e disfuncional de Oswaldinho, playboy petulante e mau-caráter que deseja a morte do pai Gastão de olho na herança, enquanto rouba as joias da mãe para saldar as dívidas que não podem esperar; de outro lado, a família de classe média de Joice, jovem Testemunha de Jeová que deseja um amor para a vida toda e para ele se guarda, vivendo nesse meio tempo com o pai, Salim Simão, viúvo divertido que teve um bom casamento com a esposa. Certo dia Oswaldinho finalmente consegue se tornar presidente de uma das empresas do pai, por coincidência ao mesmo tempo que Joice começa a trabalhar ali; encantado pela moça e acostumado a ter toda mulher que quer, segue num crescendo de desejo e frustração à medida que ela resiste fortemente aos seus avanços. 

O jogo da sedução e a ameaça à castidade não são novidades na obra do dramaturgo; entretanto, a grande surpresa reside no fato de que a peça tem um final feliz, com Joice conseguindo resistir ao assédio do patrão até ao ponto em que este se compromete a ter um relacionamento a sério, mudando de vida. Sabendo disso e acostumado à tragicidade das peças anteriores, maximamente desencantada em Toda Nudez Será Castigada, o leitor habitual de Nelson Rodrigues pode chegar à conclusão de que esta obra é um ponto fora da curva, um experimento independente; o próprio dramaturgo parece ter sentido isso em algum nível quando deu o título à peça. Todavia, Anti-Nelson Rodrigues é bastante eficaz na representação da visão de mundo do seu criador; para entender como isso funciona, é preciso prestar atenção ao pano de fundo mesquinho da história, em contraste com o qual se destaca o amor ingênuo sustentado por Joice.

Oswaldinho é um sujeito desprezível; vive na farra e gastando o dinheiro do pai, sempre em seu encalço para cobrir os cheques sem fundos que emite; não obstante, deseja sua morte, a fim de que possa se apossar da fortuna herdada e consumi-la prodigamente; para isso lhe envia cartas anônimas nas quais dispara as acusações mais aviltantes, objetivando desse modo minar aos poucos a saúde do velho.

A família da qual o rapaz provém não é muito melhor. Gastão sente uma dor no peito, que irradia pelo braço esquerdo, porque é sempre aborrecido pela mulher e o filho; chega a afirmar não existir solidão pior do que a companhia da esposa. Tereza, de sua parte, não apresenta nenhuma diferença de ânimo; segundo suas próprias palavras, fracassou como mulher, o marido não gosta dela, os namorados não gostavam dela, e assim não há ninguém que possa dela gostar, a não ser o filho, a quem se volta como náufraga. 

Medianos, mesquinhos e infelizes: é inevitável que os predicados dos pais sejam transmitidos ao filho. Uma vez que representam a vileza difundida pela sociedade, a família milionária se soma ao imenso grupo de personagens de Nelson Rodrigues pouco vocacionadas à edificação alheia. Diante da aparente inevitabilidade, contudo, surge Joice, disposta a ser diferente porque acredita na existência do verdadeiro amor.

Apesar de ser uma personagem convincente em sua bondade, sem resvalar na inverossimilhança de um caráter monolítico e sem nuances, Joice acaba se revelando um tanto melodramática quando comparada às personagens rodrigueanas mais naturalistas, e está justamente no melodrama a chave de leitura que permite identificar a visão de mundo tão típica de Nelson Rodrigues. Numa fala incomumente extensa para os padrões do dramaturgo, Gastão parece dar voz ao seu criador:

Uma vez, eu vi um filme italiano. Era uma história de bandido. História feroz, sem nenhuma vergonha do dramalhão. E lá havia o velório genial, o velório que cada um deseja para si. O bandido estava na mesa do necrotério, e cravejado de balas. E, de repente, chega a mãe do defunto. Minha mulher, está ouvindo? Qualquer grande dor tem gritos que ninguém ouviu, jamais, mas nenhuma mãe, em nenhum idioma, berra, uiva, como a mãe daquele morto. Era a mais siciliana das sicilianas. Ao ver o cadáver, esganiçou todos os gritos do seu espanto. Ah, Tereza, Tereza. Na minha poltrona, eu tive uma sensação de deslumbramento.

Os pactos de morte que perpassam Álbum de Família, Perdoa-me por Me Traíres e O Beijo no Asfalto, assim como a defesa da adúltera que busca o amor impossível são gestos folhetinescos e melodramáticos com que Nelson Rodrigues pontua sua dramaturgia, não só para efeitos cênicos, mas também como defesa de uma moral particular. Ao dotar o amor de Joice da ingenuidade e insistência do amor romântico melodramático, é como se Nelson afirmasse que, no mundo vil que é o cenário de suas peças, só a capa do ridículo é capaz de proteger o indivíduo para que ame verdadeiramente - basta tentar evitar o ridículo e a vileza consome o sentimento a princípio genuíno. O ridículo do amor, ao fim e ao cabo, é a renúncia a uma sociedade de aparências interessadas.

Escrita na esteira de Toda Nudez Será Castigada, Anti-Nelson Rodrigues traz um dramaturgo mais otimista, ainda consciente das agruras da condição humana, entretanto capaz de enxergar brechas inusitadas por meio das quais sentimentos nobres possam ser expressos. Assim, partindo para o final do ciclo de dezessete peças, Nelson Rodrigues parece perceber de forma mais aguda as pistas que deixara antes - posto que então sufocadas pelo entorno hostil -, já indicativas de um otimismo na mesma medida modesto e plausível.

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