Vozes do Deserto, de Nélida Piñon

 

Vozes do Deserto, de Nélida Piñon


As histórias d’As Mil e Uma Noites atravessam os tempos e gerações de leitores. Seus personagens são aventureiros envolvidos em peripécias e fatos insólitos, que atualizam para o público possibilidades de vida que dificilmente viveria por si mesmo. O pano de fundo dessas histórias é conhecido: o califa que, depois de traído, decide se deitar com uma donzela a cada noite e matá-la ao nascer do sol; Scherezade, filha do vizir, que se entrega como donzela ao califa para evitar a matança, seduzindo-o com suas histórias sem fim e deste modo adiando o decreto de morte que paira sobre sua cabeça. Entretanto, o excesso dos dias, histórias e aventuras que se passam fazem sombra à história que permeia as outras e é o motivo de existirem: a vida íntima de Scherezade, sua humanidade periclitante e obrigada ao esforço criativo sob pena de morte; como foi viver assim por tanto tempo? Ao aproveitar-se do produto da imaginação de Scherezade, o leitor repete o despotismo do califa, passando ao largo da origem macabra do seu deleite.

Em Vozes do Deserto, Nélida Piñon é a leitora de As Mil e Uma Noites que finalmente faz cessar o gesto mecânico de repetição e passa a olhar em direção à mulher por detrás das aventuras, vítima à beira do cadafalso, presa do apetite do déspota. A escritora leva então o leitor a viver a sucessão exaustiva de tantas noites e dias, confinado aos espaços sempre iguais, quentes e cansativos do palácio do califa, andando em círculos junto daquele grupo de mulheres obrigadas a nunca se esquecer da mortalidade. A narrativa que resulta transcende os limites dos aposentos reais, pois desde logo se torna evidente que o esforço lúdico para evitar a morte é mais do que a sina particular de Scherezade, é verdadeiramente o esforço humano para vencer a aleatoriedade voraz dos dias que se sucedem e, ao final, talvez, alcançar a imortalidade.

Filha do vizir, alto funcionário do reino, Scherezade escolhe participar do jogo macabro que o califa engendrou, esperançosa de deter heroicamente a morte injusta de inúmeras mulheres, e ambiciosa de desenvolver seus dons literários. Na escolha que faz, não vai só: acompanha-a a irmã mais velha, Dinazarda, mulher prudente que lhe ajuda na consecução do seu intento. O vizir fica para trás, contrariado e impotente diante da crueldade do soberano a que serve. Uma vez no palácio, soma-se às irmãs a escrava Jasmine, originária de uma tribo do deserto cujas tradições modelam seu ser, a qual, não obstante sua condição subalterna, insinua-se na trajetória das outras duas prestando-lhes favores, fazendo-se necessária e se deixando envolver pela força das histórias que Scherezade conta. A alcova compartilhada entre o califa e Scherezade não é exclusiva dos dois: nela permanecem Dinazarda e Jasmine, escondidas atrás de um biombo quando do sexo, participantes das aventuras quando contadas. Sofrem, esforçam-se e tremem de gozo e terror, juntas, as três.

Scherezade vence a primeira noite, não é enviada ao cadafalso, e assim prossegue em suas histórias dias sem conta, num cotidiano repetitivo, em que os únicos elementos de novidade são aqueles criados pela imaginação. Os poucos personagens - o califa e as três mulheres - circulam por esse cotidiano ao mesmo tempo tedioso e apreensivo, no qual a liberdade só é alcançada pelo pensamento. Mesmo o califa, muito embora detenha poder absoluto e, portanto, goze de liberdade plena, vê-se cativo da curiosidade que tem pelas histórias contadas, bem como das fraquezas e dúvidas que esse estado de coisas começa a suscitar em seu íntimo.

Para vidas que se desenvolvem em círculos antes que em linha reta, nas quais o rumo não é certo, e a circularidade infinita, uma possibilidade, Nélida Piñon não poderia narrar a história que emerge de forma linear, progressiva, ágil e precipitada; afinal, trata-se justamente da narrativa da contenção dos gestos precipitados e terríveis do califa, e da monotonia e repetição de hábitos que se seguem. Sendo assim, a escritora reproduz na estrutura e estilo que emprega o ambiente asfixiante e exaustivo habitado por seus personagens, a fim de levar o leitor a comungar da experiência e se compadecer dos que a vivem. Por isso muitos capítulos se acumulam sem que nada se altere no arranjo estabelecido, persistindo as mesmas dúvidas, hesitações e esperanças. É preciso que o leitor se canse tal como as três mulheres a fim de compreender seu sofrimento; de outro modo o sofrimento mais uma vez passaria ao largo, como tem passado para gerações de leitores d’As Mil e Uma Noites.

Engana-se, porém, quem pensa que na sucessão repetitiva de cenas, pensamentos e diálogos absolutamente nada se altere. Aqui, as mudanças que carecem ser operadas partem das profundezas de cada qual, a começar pelo califa, e portanto evoluem silenciosamente - emitindo apenas pequenos sinais, perceptíveis, não obstante, ao leitor atento -, para só ao final eclodirem num jorro definitivo.

O tempo da exaustão é também o tempo da contemplação, da apuração dos sentidos: a limitação de espaço e movimento se mostra imprescindível à percepção dos sabores, aromas, sons, texturas e sentimentos emergentes do rico universo árabe, em que os seres e objetos parecem sempre convidar à transcendência através dos sentidos, muito por força, talvez, da impossibilidade de cruzar simples portas.

O que é contido e espera é o que fermenta e expande. Da luta oblíqua travada entre Scherezade e o califa, à medida que vez após vez o leitor é exposto aos mesmos lances, levantam-se ecos que vão muito além da trajetória individual da protagonista.

Inventar maneiras de sobreviver dia após dia sem cessar, enfrentando a aleatoriedade do cotidiano, de um deus e de leis que não são conhecidos por inteiro, não é ao fim e ao cabo a descrição da própria condição humana? 

Criar narrativas que superem o espaço doméstico, se perpetuem na memória dos leitores, sejam guardadas na memória ampla das bibliotecas e, por fim, sejam conhecidas e lidas por leitores que sobreviverão ao criador, não é também uma forma de ludibriar a morte à espreita e se tornar imortal?

Preocupar-se com o encadeamento dos fatos, a apresentação dos personagens, os diálogos, o ritmo, a retenção da atenção do deus-leitor a fim de que siga a história até o final, não é a precisa definição do fazer literário, da busca por uma obra bem-sucedida?

Lançar-se à escrita como um deus criador, cansar-se com os desafios do texto, as arestas do estilo, a estrutura da trama, temendo não conseguir sobreviver até que o ponto final seja lançado na página, não é a experiência comum de tantos escritores? Quantos deles já não se ouviu relatar que sentem medo da morte, ao mesmo tempo que se protegem dela enquanto criam, como se fosse um imperativo cósmico o de que o criador não pode ser detido no curso de sua criação? Nesse sentido, Scherezade, ao lançar-se na empresa heroica e mortal de salvar as donzelas do reino, não estaria, paradoxalmente, buscando assegurar sua própria sobrevivência através da necessidade imperiosa de contar histórias sem cessar? Talvez, sem o estímulo funesto do califa, Scherezade não contasse a mesma profusão de histórias, e de outro modo sucumbisse à mortalidade.

O que é contido e espera é o que fermenta e expande. O califa fora educado desde a infância a nunca desviar a mirada do horizonte de suas vontades, a prosseguir ao encontro delas sem se desviar para trás ou para os lados, firme na crença de que os que estão ao redor não deterão sua marcha inexorável; esse horizonte de vontades, no entanto, é bastante previsível, reflexos condicionados dos seus ancestrais. Com isso o califa não se conhece, não conhece seu povo. A ausência de individuação somada ao poder que detém endurecem-no, tornam-no impermeável ao que vem de fora, quebradiço. Quando a sultana o trai com o africano, a previsibilidade da marcha é subitamente rompida, e a reação é tornar-se mais duro para não esfacelar, compensando a inflexibilidade com o jorro do sangue das vítimas que faz.

Todavia, ao ser enredado pela trama repetitiva e incansável de Scherezade, o califa sem perceber vai se cansando do seu modo de ser, transformando-se, não porque assim o queira, mas porque já não consegue se movimentar na marcha resoluta que empreende desde sempre, pois os membros estão rígidos e dão os primeiros estalos. Só a sinuosidade da ação de Scherezade, os círculos graduais com que o envolve, são capazes de umedecer o califa de pedra e abrir-lhe poros. A sultana só o que fez com seu gesto abrupto foi juntar mais argamassa à estátua; foi necessário que Scherezade pacientemente jogasse água nela a fim de a amolecer e movimentar.

Vozes do Deserto, antes que a história contada, é a experiência de vida dos seus personagens que permite ao leitor compartilhar. As meras histórias rocambolescas e emocionantes estão n’As Mil e Uma Noites e são conhecidas há séculos; muitos leitores passaram por elas e, em razão de sua rigidez, não deram atenção ao drama humano que as subjaz; foram o califa das primeiras noites, meramente entretidos. Foi preciso que Nélida Piñon, neste livro, aguando paciente e repetidamente os membros enrijecidos dos leitores os levasse a perceber que a história que mais importa está oculta, e é a que tem mais a dizer à vida íntima de cada um. Scherezade educa para a imortalidade possível.

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