Joseph Fouché, de Stefan Zweig

Joseph Fouché Stefan Zweig



Ler é um ato de incoerência. Se precisasse extrair uma única lição da leitura de Joseph Fouché, de Stefan Zweig, seria essa. Meu primeiro contato com o famoso escritor austríaco foi marcado ao mesmo tempo pelo interesse e pela sensação de que não devia estar lendo o livro. Ao final, só pude concluir - e reforçar uma percepção antiga - que nenhuma leitura jamais será feita em condições ideais, e pressupô-lo significa ficar parado entre as estantes da biblioteca do mundo, sem saber por qual livro começar. Joseph Fouché foi uma personagem real da virada do século XVIII para o XIX, homem público francês que desempenhou os mais importantes papéis desde a Revolução de 1789 até a restauração dos Bourbon, com a volta ao trono de Luís XVIII, passando, como não poderia deixar de ser, pelo período marcante e incontornável do governo de Napoleão Bonaparte. A lembrança que contemporâneos e posteridade reservaram a Fouché certamente não foi das melhores: o sucesso político e a formação da fortuna pessoal foram baseados num lendário sangue-frio, com o qual pôde, sem cerimônias, trair o companheiro da véspera e abraçar à luz do dia o adversário de outrora, assim sucessivamente, conforme a roda da fortuna girasse. Zweig foi levado a prestar atenção no célebre vira-casaca por uma menção feita por Balzac em determinado passo da Comédia Humana. O austríaco então empreendia um trabalho de aprofundamento psicológico de personagens célebres da história, consistente não propriamente na transformação de biografias em romances, mas antes na atribuição de elementos literários às biografias tradicionais, os quais permitissem trazer à tona a dinâmica pulsante dos fatos e a vitalidade dos seus protagonistas, aspectos inevitavelmente deixados de lado pela objetividade dos biógrafos. Fazem parte desse ciclo, entre outras, as biografias do próprio Balzac e de Maria Antonieta, além, obviamente, da de Fouché. Uma biografia tradicional é a história da vida de uma pessoa tornada célebre por algum motivo; sua leitura, portanto, pressupõe não só o interesse pelo biografado, como também, e às vezes principalmente, o interesse por esse “algum motivo” que o celebrizou. Foi partindo dessa ordem de ideias que comecei a sentir um certo desconforto com a leitura de Joseph Fouché; afinal, ele se celebrizara por agir de forma decisiva nos principais lances da história da França; logo, lê-lo implicava o interesse por essa história, além do conhecimento prévio dos seus principais aspectos e protagonistas. Fouché, conquanto da maior importância na ordem do dia daqueles tempos, não passou para a posteridade no panteão dos nomes mais célebres, de primeiro plano. Se meus conhecimentos da história da França se resumiam a generalidades ensinadas no Ensino Médio brasileiro, e se não conhecia em detalhes a biografia de homens de primeiro plano como Rousseau, Robespierre, Danton, Napoleão e Luís XVIII, por que cargas d’água ler uma biografia sobre um personagem do segundo plano desses tempos, objeto de interesse de especialistas já escolados por muitas leituras prévias? E por que fazê-lo por meio de uma biografia que nem biografia é, mas uma abordagem literária e ensaística de uma vida, pelo que pressupõe familiaridade ainda maior com o tema subjacente? Por que começar a ler Zweig pelas pontas, justamente por esse exercício de criação que lhe foi tão peculiar, e não por um romance tradicional, ou, se for o caso, pela biografia literária de alguém mais conhecido, como Maria Antonieta? Porque ler é um ato de incoerência, somente desenvolvido dentro de circunstâncias factuais e cognitivas adversas. Porque ler constitui o próprio movimento de estabelecimento da ordem das coisas, e não há ordenação possível dentro do que já está ordenado. Eu recebera de presente o livro de Zweig. Joseph Fouché é o único livro de Zweig presente na minha estante. Eu não pretendia tão cedo estudar a história da França, ler a biografia de Robespierre ou Napoleão, ou mesmo ler a biografia tradicional de Fouché. Por todos esses motivos, só me restou ler a biografia literária de uma personagem secundária da história da França, constitutiva de uma seção um pouco obscura da obra de um escritor austríaco. E, na vida de um leitor, apenas essa escolha é possível, sob pena de submergir no caos da inação. Zweig não se interessou à toa por Fouché. Sendo um grande escritor, vislumbrou na pista deixada por Balzac todo um campo a ser explorado, a psicologia do homem que viveu e sobreviveu a situações às quais sequer seus contemporâneos mais ilustres sobreviveram. As agitações políticas na França da virada do século XVIII para o XIX constituem um dos períodos mais delicados da história europeia, exigindo de seus participantes atenção, destreza e inteligência sobre-humanas para serem superadas. A grandiosidade - ainda que perversa - de Fouché está não só em superar essas agitações, passar ileso, como principalmente em mergulhar nelas como nenhum outro e delas se aproveitar em lances de gênio que revelam todo um conhecimento da alma humana e das dinâmicas do poder. A vida de Fouché, apesar da incontestável singularidade, não deixa de ser uma pista importante para a compreensão dos homens políticos que andam por todos os lugares, em todos os tempos, criaturas matreiras, não admiráveis pelo bem que fazem, mas pela capacidade inegável de se beneficiarem em meio às maiores adversidades. Ao penetrar no âmago dessa vida, Zweig procura investigar um fenômeno universal, e quem sabe assim lançar luzes sobre a humanidade que subjaz a esses atos, de modo que seus autores sejam vistos como homens vis acessíveis à oposição humana, em vez de heróis inacessíveis e infensos à oposição. É possível fazer essa conjetura, ainda mais quando nos lembramos da militância pacifista de Zweig, fortemente motivada pelos horrores da I Guerra Mundial. Tendo incoerentemente lido Fouché, agora sei um pouco mais sobre a história da França, Robespierre e Napoleão. Cogito a possibilidade de me aprofundar nesses estudos. Sinto-me encorajado a prosseguir na leitura de Zweig. Por certo uma leitura precedida dos conhecimentos de um especialista teria sido mais proveitosa; porém, não era uma leitura possível. Para o leitor, bastam suas circunstâncias e a vontade de seguir em frente, mesmo que aos tropeções. Só quem leu tudo pode fazer uma leitura coerente; entretanto, aí se trataria de uma releitura, de modo que a leitura propriamente dita permaneceria como um ato de incoerência. Continuemos, seres humanos, tropeçando e avançando: é o que nos foi reservado.


Para comprar este livro*: https://amzn.to/3dYqM6h *comprando por este link você ajuda o Diário de Leitura com uma pequena porcentagem da sua compra.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Doroteia, de Nelson Rodrigues

Ópera dos Mortos, de Autran Dourado

A República dos Sonhos, de Nélida Piñon