A Peste, de Albert Camus

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Desde que a editora Record passou a relançar as obras de Albert Camus com novo projeto gráfico, venho acumulando seus livros sem no entanto dar-lhes atenção. Fizera uma tentativa com O Homem Revoltado, mas desanimei no meio do caminho, não porque fosse ruim, e sim porque estava indisposto naquele momento a seguir, do princípio ao fim, o longo raciocínio filosófico que o autor desenvolvia. Nessa quarentena, contudo, vi-me estimulado a tentar novamente uma aproximação, desta vez pela via da ficção e do não mais do que óbvio A Peste. De fato, escolher A Peste como leitura neste momento foi, da minha parte, uma escolha clichê. Foi também uma escolha imbuída de certa hesitação, pois talvez não fosse o momento mais adequado para aprofundar a tensão já existente com um tema tão lúgubre por força da sua atualidade. Segui em frente, e não me arrependo de o ter feito.

A leitura d’A Peste em plena pandemia do coronavírus é talvez uma oportunidade única para dar expressão não só literária, mas - num plano mais básico -, verbal a sentimentos e percepções que nos rodeiam, e assim organizar nossa vida interior. É igualmente uma ótima oportunidade porque, em outras circunstâncias, essa leitura provavelmente seria feita de um ponto de vista simbólico, perdendo-se por isso muito da percepção sagaz de Camus ao acompanhar as reações humanas possíveis a uma crise sanitária real. Os que - com toda legitimidade - se encontram mais sensíveis no momento, farão bem em evitar essa leitura agora. Os que, apesar de sensibilizados como todos nos encontramos, ainda hesitam em prosseguir ou não, deverão saber que a semelhança da nossa situação, ao mesmo tempo que nos aproxima da narrativa, embute um pouco das nossas reações, pois estamos tão imersos no conhecimento da dinâmica epidêmica e suas consequências práticas que começamos a identificar certos furos nesse sentido ao longo da obra, o que diminui seu impacto.

Orã, na Argélia, é um importante entreposto comercial na bacia do Mediterrâneo, onde as atividades mercantis perpassam com força o cotidiano popular de tal modo que não se percebe muito brilho da população em outros campos, sendo disso símbolo o fato de que a cidade, apesar de litorânea, se desenvolvera como que de costas para o mar, pouco interessada no que de lúdico e aprazível pudesse oferecer.

Em determinado momento, ratos começam a aparecer mortos em lugares incomuns. Logo em seguida, os cadáveres desses animais começam a se avolumar  pelas ruas, causando asco à população e obrigando as autoridades a tomar providências extraordinárias para lidar com o problema. Passado um tempo, cessa a aparição de ratos mortos, e a população se sente aliviada por voltar à normalidade. Não tarda, no entanto, para que algumas pessoas sejam acometidas de uma doença fatal, que vai pouco a pouco se alastrando.

Boa parte d’A Peste é dedicada a contar os percalços da doença na cidade e os esforços que precisaram ser feitos para contê-la. Orã precisou ser fechada, dela se desviando trens e navios. Ninguém entrava e ninguém saía. Os estrangeiros que se encontravam dentro dos seus muros quando do fechamento dos portões se viram obrigados a estender sua permanência; amantes e parentes ficaram reduzidos à distância intransponível que os mediava. Acompanhamos então as manifestações da doença, seu alastramento, os esforços médicos capitaneados pelo Dr. Rieux e, principalmente, o modo de vida e o estado de mente a que a população se viu reduzida durante os muitos meses em que a vida ficou em suspenso por causa da peste.

É na descrição da reação humana à dinâmica da doença que Camus encontra espaço para demonstrar sua sagacidade como escritor e intérprete da alma humana.

Num primeiro momento, há um sentimento de negação. Segundo o narrador, “foram necessários vários dias para que nos déssemos conta de que nos encontrávamos numa situação sem compromissos e que as palavras “transigir”, “favor”, “exceção” já não faziam sentido”.

Passados alguns dias, o sentimento de negação persiste. “Ninguém aceitara ainda verdadeiramente a doença. A maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava os seus hábitos ou atingia os seus interesses. Impacientavam-se, irritavam-se e esses não são sentimentos que se possa contrapor à peste. A primeira reação, por exemplo, era culpar as autoridades.

Embora fosse anunciado o aumento do número de mortos, a população de Orã não conseguia se deixar afetar; afinal, "[...] talvez nem todos tivessem morrido de peste. Por outro lado, ninguém na cidade sabia quantas pessoas morriam por semana em tempos normais.”

Mesmo quando medidas drásticas foram tomadas, reduzindo a circulação de pessoas, a provisão de alimentos e o funcionamento das instituições, a população não alterou sua atitude: tudo aquilo era tão incomum que só poderia se tratar de coisa rápida. Era impossível não ver a peste como uma abstração, uma abstração em confronto com os esforços de felicidade pessoal.

Todavia, à medida que a abstração persistia, e com ela os novos hábitos, as pessoas começaram a se esquecer dos hábitos antigos. À negação, seguiu-se a “normalização” da nova realidade.

Nessa fase de normalização, em que os novos hábitos imperavam, os sentimentos individuais foram substituídos por sentimentos coletivos. Em outras palavras, já não fazia sentido nutrir perspectivas individuais quando o que batia à porta de todos era a premência da peste.

Apesar da ferocidade da doença, aqueles tempos não seriam vistos pelos que os viveram como um incêndio repentino que lhes arrebatara a segurança. O cotidiano era marcado por uma monotonia inescapável. Monotonia em que havia uma “mania de querer falar da peste o menos possível e, no entanto, de falar dela sem cessar.”

Assim como os tempos de peste não seriam vistos como evento súbito e arrasador, a tão acalentada volta à normalidade igualmente não viria como evento repentino passível de comemoração. Ela também foi se dando monotonamente, de modo que, quando acontecimentos antes tão acalentados como a volta do trânsito de navios e trens finalmente se deram, ninguém se espantou, pois parecia normal que fosse assim.

A leitura d’A Peste sugere que, não obstante a anormalidade da situação vivida, o ser humano é obrigado a normalizá-la em algum nível, sob pena de não conseguir lidar com ela. É impossível e demasiado oneroso sustentar o espanto por muito tempo.

Em oposição à grandeza da investigação da alma humana, há um problema de verossimilhança na narrativa de Camus, que talvez passasse despercebido para um leitor não afeiçoado a uma crise sanitária real. A lógica das medidas de confinamento social e isolamento dos doentes não faz muito sentido: é proibido o contato com o mundo para além dos muros de Orã, mas dentro deles é permitida uma circulação relativamente ampla de pessoas, com muito contato entre si. Sugere-se uma transmissão de pessoa para pessoa, talvez através do ar, talvez pelo contato da pele; mas não se extraem as últimas consequências dessas formas de contágio. Ao mesmo tempo, fica a dúvida sobre a relação dos ratos com a propagação da peste: depois do estágio inicial, ainda desempenhavam algum papel, ou só foram importantes na contaminação dos primeiros doentes humanos? De outra parte, há um procedimento de quarentena para aquelas famílias com pessoas doentes. Parece então não haver consciência de que a transmissão possa se dar por pessoas assintomáticas. Talvez seja isso. Entretanto, o que mais incomoda é a aparente falta de cuidado dos médicos no trato dos pacientes e sua inexplicável resistência ao contágio: o Dr. Rieux se expõe sucessivas vezes ao longo do livro a todas as formas possíveis de contaminação por parte de seus pacientes, mas nunca fica doente.

Essas talvez sejam considerações dispensáveis, exigências injustificáveis feitas a uma obra de ficção. São, contudo, inevitáveis por parte de alguém que lê o livro neste momento e o compara a sua realidade. Camus certamente não se mostrou um grande infectologista nessa obra, e possivelmente não era essa a sua pretensão. Provavelmente, porém, pretendia descrever um quadro humano convincente, uma investigação de como o homem reage à peste: nisto, sem sombra de dúvidas, foi muito bem-sucedido.

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