O Complexo de Portnoy, de Philip Roth




Já falei por aqui mais de uma vez sobre o sucesso da minha experiência com os audiobooks; porém, sempre que o fiz, foi em termos de dinamização das leituras, facilidade de acesso e coisas do tipo. Enfim, a grande graça dos audiobooks até então estava, para mim, em serem um formato útil à minha vida de leitor. No entanto, com a escuta recente do audiobook d'O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, minha visão sobre o formato foi elevada a um nível todo novo e superior, que me fez enxergar a vastidão de suas possibilidades em termos de interpretação dos textos pelos narradores.

É a primeira vez que entro em contato com a obra de Roth. Não tinha especial interesse em conhecê-la, tampouco em evitá-la, tratava-se apenas de um escritor entre tantos outros, que estava naquela fila infinita de nomes por conhecer em razão da celebridade crítica, mas sem outros adjetivos que o ajudassem a passar na frente dos colegas. Sabia que ele tinha certas obsessões temáticas, entre elas a vida sexual, o que, se não chegava a me desagradar, também não me atraía particularmente; em verdade, não estou familiarizado com a tradição de autores que discutem a partir do sexo os mais variados aspectos do ser humano; incluo nessa lista, meio às cegas, Henry Miller, Bukowski, Marquês de Sade, Georges Bataille, André Gide e o próprio Roth.

Novamente, a exiguidade do catálogo nacional de audiobooks me forçou a escolher o livro de Roth assim que ele apareceu na plataforma Google Play. Não sabia nada do título, absolutamente nada, e sequer parei para pensar que o divã da capa sugeria uma temática psicanalítica. Qual não foi minha surpresa, portanto, quando descobri que o livro era uma imensa sessão de psicanálise de um jovem judeu de nome Alexander Portnoy, em que ele desnuda a si e a sua família sem nenhum pudor, e, o que é melhor, com um tom cômico capaz de fazer perder as forças de tanto rir. Muitas foram as vezes em que, escutando o audiobook na academia, tive que parar o exercício por me faltarem forças para continuar, além da necessidade de esconder a gargalhada constrangedora naquele ambiente. Para quem já assistiu, há um forte paralelo entre a vida de Portnoy e a de Motti, do filme O Despertar de Motti.

Alexander Portnoy é um jovem judeu norte-americano, ali por volta dos seus trinta e três anos, que tem tido dificuldades para viver a vida de maneira natural e desembaraçada desde que se entende por gente. Sua história é a do típico filho judeu de uma família que não se sente plenamente integrada ao entorno de onde vive. Seus pais depositam imensas esperanças nele, seja para ser um bom garoto, estudante e cavalheiro; seja para honrar a milenar tradição judaica, com seus costumes, normas alimentares, preceitos religiosos e regras de todo tipo; seja ainda para se casar com uma boa moça judia, ter muitos filhos e assim perpetuar o nome da família. A mãe de Portnoy é a típica mulher histérica da Viena de Freud, com seus exageros, autopiedade e obsessão pelos menores detalhes de sua vida. O pai é um inocente vendedor de seguros, um grandalhão sempre submisso à esposa exuberante, cuja existência é perpassada pelo drama da prisão de ventre.

Tendo crescido nesse ambiente, Portnoy convive em sua alma com o drama constante de querer violar as regras a que está submetido, ao mesmo tempo que não consegue, na prática, violá-las verdadeiramente - a não ser por um campo, o sexo, que se torna uma obsessão, a princípio como um masturbador compulsivo, e depois como um verdadeiro escravo das vaginas espalhadas por toda parte. Expostos desse jeito os principais elementos do enredo, pode-se chegar à conclusão equivocada de que este é mais um drama sobre a libertação de constrições morais; todavia, essa conclusão não se coaduna em absoluto com o livro, estando justamente nessa diferenciação o toque de genialidade de Roth. Ao colocar seu personagem-título no divã de um psicanalista que lhe permite falar sem freios e pelo tempo que desejar, Roth faz com que ele, sendo o judeu bem-educado e articulado que é, desça ao mais profundo de sua história e hábitos, a fim de emergir deles como uma pessoa diferente. Entretanto, essa descida não é feita de forma sombria e chorosa, em direção a uma existência marcada pela dor, violência e sofrimento; muito pelo contrário: o que causa os tormentos de Portnoy são gestos aparentemente banais da mãe super protetora, como preocupar-se com a contaminação por germes espalhados por todos os lados, ou diferenças de estilo de vida entre judeus e não-judeus, como o desassombro com que os rapazes não-judeus podem viver suas vidas, livres de regras asfixiantes. A narração dos episódios “traumatizantes” da vida de Portnoy é uma sucessão hilária de acontecimentos, a qual, porém, não se apresenta como um mero exagero do personagem, mas sim nas conexões reais que esses acontecimentos estabelecem, apesar de sua aparente inocência, com as dificuldades reais que Portnoy enfrenta para ter uma vida normal.

E é aí que entra a mestria do narrador Rafael Maia ao dar voz a Portnoy. Rafael Maia não só assume uma dicção para Portnoy, como também a modula para se expressar na fala da mãe, do pai e das pessoas em geral que fazem parte do cotidiano do personagem; e isso não é feito como se fossem de fato essas pessoas falando segundo sua própria voz, mas sim de acordo com o modo com que Portnoy as representa em sua mente. É como quando nos imaginamos discutindo com alguém e, em nossa mente, lhe atribuímos uma voz algo caricata, que expressa assim o desapreço que nutrimos por aquela pessoa, desapreço esse que acaba por ser parte da própria motivação da discussão. Por meio dessa modulação, Rafael atinge efeitos cômicos excelentes e, decerto, acessa um pouco da mente de Philip Roth ao escrever o livro, pois parece razoável crer que o escritor, ao imaginar seus personagens, imaginou-os com aqueles trejeitos e exageros. Certamente a simples leitura do livro será capaz de divertir e interessar o leitor; não é menos certo, porém, que a escuta do audiobook, por conta da interpretação do narrador, representará um acréscimo de muitas camadas de complexidade, diversão e profundidade àquela experiência. No audiobook, a voz de Portnoy lembra muito a voz do Chris da série Todo Mundo Odeia o Chris; e é bem feliz essa coincidência, porque tanto Portnoy quanto Chris são jovens tentando se encontrar em meio às diferenças do entorno e sob a pressão de mães histéricas; o primeiro, um judeu suburbano vivendo nos Estados Unidos das décadas de trinta a sessenta sob o jugo de Sophie; o segundo, um negro suburbano vivendo igualmente nos Estados Unidos, mas da década de oitenta e sob o jugo de Rochelle.

A argúcia com que Roth estabelece nexos entre acontecimentos aparentemente bobos da vida de uma criança com a construção de sua visão de mundo, por causa de sua penetração, gera uma imediata empatia no leitor masculino, que se vê muitas vezes identificado com aquelas situações que foram suas no passado. Sendo assim, o livro também funciona como uma ótima oportunidade de acesso ao imaginário masculino por parte do público feminino, que possivelmente se surpreenderá - ou não - com o quanto da infância e de sua inocência e insegurança os homens adultos carregam dentro de si. É um contato sem filtros, então não espanta que haja muita grosseria no outro lado; trata-se, porém, de uma grosseria real, que pré-existe mesmo aos melhores esforços de superá-la: a grosseria do humano em processo de aperfeiçoamento. Nesse sentido, este livro talvez seja a confirmação da concepção popular de que as mulheres amadurecem mais do que os homens.

A identificação que Roth promove não se dá apenas nos episódios cômicos e traumatizantes. Mais para o final, no capítulo intitulado “No Exílio”, há uma bela digressão de Portnoy acerca da convivência com os homens judeus adultos de sua infância, e de como seus costumes e interação lhe inspiravam entusiasmo por reproduzir aquele estilo de vida, entusiasmo que, embora possa ser classificado como pueril em certo nível, não deixa de expressar o que de positivo - e, portanto, desejável - havia naquele estilo de vida, e que deve ter contribuído para seu sucesso e perpetuação histórica.

Também vale mencionar a complexidade dos sentimentos de Portnoy, tipicamente judeu, relativamente ao seu entorno habitado por norte-americanos “nativos”: a obsessão pelos nomes, pelos traços, pelas diferenças de estrutura familiar e estilo de vida. Ao retratá-la, Roth não retrata apenas o sentimento que um judeu possui de ser diferente; igualmente retrata a percepção de diferença inata a todo ser humano, seja dentro da polaridade rico-pobre, ou estrangeiro-nacional, interior-capital, zona rural-zona urbana. Quem nunca se pegou, no Brasil e especialmente no Estado de São Paulo, tendo vindo de família mais simples, comparando o seu sobrenome tipicamente luso-brasileiro com os sobrenomes italianos, alemães ou sírio-libaneses de seus colegas de escola mais ricos? Eu mesmo tinha esse contraste muito nítido em minha mente quando era criança, por aí se explicando, possivelmente, meu espanto e identificação com a descoberta do Rio de Janeiro e de sua sociedade, em que os ricos e bem-nascidos ostentam os mesmos sobrenomes de sonoridade luso-brasileira que os pobres e remediados de São Paulo: não são exatamente iguais, mas soam semelhantes, o que já ajuda muito. Muito dessa necessidade de identificação infantil persiste no adulto, e é isso que Portnoy representa; a ponto de, ao chegar a Israel e se ver num país onde tudo é judaico, quase todas as pessoas, desde o açougueiro até o chefe de Estado, passando pelo guarda e pelo motorista, entrar num verdadeiro êxtase espiritual.

Uma última consideração. O livro inteiro de Roth é uma imensa sessão de psicanálise em que o personagem-título fala sem freios. Mesmo um leitor leigo, como eu, é capaz de entrever, para além dos pontos destacados, a existência de um forte diálogo com a tradição psicanalítica freudiana por debaixo de toda aquela hilaridade, o que me faz pensar que um leitor especializado conseguirá extrair ainda mais da obra, que com certeza encerra essas outras camadas de complexidade.

Para comprar este livro*: https://amzn.to/39T56qb

*comprando por este link você ajuda o Diário de Leitura com uma pequena porcentagem da sua compra.


Comentários

Luís Roberto disse…
Pronto! Eu pensava em começar minha leitura de Roth por Pastoral Americana, livro que até já adquiri com tal intenção, e o Lucas me convence a ouvir Alexander Portnoy pela voz emprestada de Rafael Maia. Será, na verdade, minha primeira experiência com áudio-livro (sou um bom leitor, mas daqueles que não se acostumaram com plataformas tipo Kindle ... eu tentei me adaptar aos e-books, mas o fato incontestável é que gosto mesmo do papel em minhas mãos). Mesmo quando o Lucas disse que passaria a fazer uso da alternativa dos áudio-livros, eu não me animei. No entanto, tendo um bom narrador oral, isso pode mudar. A ver!
Oi Lucas, te acompanho há muito tempo no YouTube. Foi uma alegria descobrir seu blog.

Parabéns pelos textos, estou gostando muito!

Obrigado pela visita. Desculpe-me a demora para responder, mas é que o sistema do Blogger é meio falho, então às vezes alguns comentários não me são notificados. Um grande abraço.
Se já concluiu a oitiva, por favor me diga o que achou.

Postagens mais visitadas deste blog

Doroteia, de Nelson Rodrigues

Ópera dos Mortos, de Autran Dourado

A República dos Sonhos, de Nélida Piñon