Um Coração Ardente, de Lygia Fagundes Telles
Tenho três livros de Lygia Fagundes Telles na estante: A Estrutura da Bolha de Sabão, As Meninas, e um terceiro, de cujo título nunca me recordo. Comprei-os numa dessas promoções de internet, um pouco pela oportunidade do preço, um pouco pela pretensão de ter uma biblioteca de literatura brasileira bem completa, um pouco ainda por saber que Lygia é uma escritora importante; nada mais. Não costumo me esquecer dos livros que tenho; portanto, essa circunstância de sempre esquecer-me do terceiro título de Lygia serviu para singularizá-los todos no meu imaginário. Para singularizá-los, repito, não para os recordar. Os anos se passaram até que, sem saber por qual motivo, finalmente li A Estrutura da Bolha de Sabão. Lembro-me de que fiquei bem impressionado com a autora, a ponto de não me esquecer do título de um dos contos, Confissão de Leontina, em que a paulista e intelectual Lygia se metamorfoseia numa mulher brasileira pobre e iletrada através de uma voz incrivelmente verossímil. Apesar do apreço, transcorreram vários outros anos até que voltasse ao universo de Lygia, desta vez não por força do acaso, mas das circunstâncias de o catálogo de audiolivros ser restrito e o dela calhar perfeitamente, em termos de duração, para uma viagem que faria a Franca. Ouvi então Um Coração Ardente, coletânea de dez contos, e fiquei imediatamente extasiado pela obra-prima que se apresentava à minha escuta.
Não sou um leitor de contos. Apesar de já estar há alguns anos envolvido com a literatura, não sou maduro o suficiente para me lançar com frequência em histórias cujo sentido nem sempre é evidente, que não têm começo, meio e fim delimitados, e que requerem, por esses motivos, uma leitura mais ativa a fim de que a sensibilidade em alerta do leitor faça frente ao desafio lançado por quem as escreve. Também por conta dessa indisposição, tendo a não gostar das coletâneas cuja unidade - que julgo dever existir em algum nível -, me escapa. Sendo assim, a escuta de Um Coração Ardente me arrebatou porque permitiu enxergar o valor do esforço de compreensão do conto, além da alegria da descoberta de uma unidade que, por ser profunda, não é fácil.
Os dez contos que compõem a coletânea fazem todos jus ao título que os reúne: um coração ardente. Essa expressão, lida de forma apressada, pode não sugerir tanta coisa, parecer um pouco vaga, relacionar-se de algum modo à paixão e ao ímpeto, mas não se sabe como. De fato é assim, e a suprema realização artística de Lygia está justamente em conseguir expressar de modo tão variado em cada conto aspectos diferentes do ímpeto da vitalidade humana que os une. Não há ponto baixo no Coração de Lygia: os dez contos são igualmente excelentes, e também aqui, tal como na Confissão de Leontina, a escritora paulista se mostra à vontade e arguta ao dar voz e vez a realidades tão distintas da sua.
O primeiro conto, que leva o título do livro, fala de um filósofo, já avançado em anos, que dá testemunho de sua vida a um auditório. Desde cedo, seu coração era inflamado pelo humano, o que o levava a querer ser poeta, artista, filósofo, muito embora, depois descobriria, não tivesse especial talento para esses ofícios. O talento não existia, mas um ímpeto pela descoberta e beleza, sim. Na juventude, deixou-se levar por seu coração ardente na conquista amorosa de uma prostituta: queria também ajudá-la, dar-lhe vida confortável, perspectivas. Seus esforços, porém, não foram correspondidos. Uma tragédia se abateu sobre o bordel. Uma outra prostituta se suicidara: desejava ter vida comum, alguém que lhe estendesse a mão, e esse alguém nunca apareceu. O filósofo errara de porta; por isso, uma vida se perdera. O mesmo erro, talvez, da natureza, ao dar-lhe ímpeto sem talento. O coração continua a arder, não obstante os equívocos e desencontros. Seu testemunho é um transbordar dessa plenitude em expansão. Outros não tiveram a mesma sorte de continuar pela vida com seu coração impetuoso e não obstante as decepções: seu filho Atos, por exemplo, não resistira à morte da namorada. A chama que arde no peito é perigosa, e a natureza, cega em seu regalos de força
A paixão e o desencontro igualmente se encontram presentes em Emanuel e As Cartas. Alice é uma quarentona desprovida de vida amorosa, não porque assim desejasse, mas porque não lhe foram dadas oportunidades. Numa reunião entre amigos, a conversa acaba por tocar no espinho que é sua solidão. Cansada daquilo, Alice decide fantasiar dizendo que namorava Emanuel (aquele que há de vir), a quem começa a atribuir características do seu gato, de mesmo nome; os convivas, sabendo que mentia, encurralam-na com perguntas cada vez mais detalhadas, e no esforço de respondê-las, Alice mente mais e mais ao mesmo tempo que ganha maior consciência de suas carências e fragilidades. O conto termina com um pé de vento que tudo derruba, em meio ao qual se anuncia que Emanuel chegara. Não se sabe se é mesmo o vento que entra pelo cômodo, ou se é Alice que perde o ar, sufocada pelas perguntas e por sua vida que não podia oferecer respostas. Arde, contudo, um coração, e arde até o delírio.
N’As Cartas, entre amigas de juventude, um maço de correspondências de amor de uma é confiado à outra numa conjuntura de conflito. As cartas revelariam um caso proibido, comprometeriam um figurão, poderiam ser usadas como arma de chantagem política. A amiga que as detém, no entanto, pretende evitar que a correspondência tenha esse desfecho, e envida esforços nesse sentido. A amiga missivista desgastara a vida num relacionamento tóxico, que nada lhe trouxera de bom. Perpassa todo o conto a ideia de que Lygia explora ali a paixão sob a faceta da desilusão amorosa, da ruína provocada pela toxicidade de um amor que é em verdade veneno mortal. A disputa pelas cartas, nesse cenário, seria apenas o epílogo tumultuado disso. Todavia, o final surpreende, conferindo contorno novos ao fulgor antes imaginado naquele coração padecente de amante.
Os relacionamentos amorosos também pautam dois outros contos, mas de forma diversa. Em O Noivo, acompanhamos o homem que acorda na manhã de uma quinta-feira, despertado por sua empregada doméstica, a fim de aprontar-se para um casamento. Ele não se lembra, entretanto, quem se casará naquele dia. À medida que se levanta, vai ganhando consciência da importância da celebração, pois o terno que lhe fora preparado é caro e bem disposto, de modo que não deve ser menos que um padrinho. Apronta-se, mas lentamente e com atraso, até que um amigo aparece para lhe apressar e ajudar. Aí começa a desconfiar de que o noivo do dia talvez seja ele mesmo, e essa desconfiança só faz aumentar sua ansiedade, pois não consegue alcançar quem seria a noiva do casamento. Relembra seus muitos amores, o que sugere um coração constantemente apaixonado, mas não consegue se definir por nenhum, já que em relação a todas aquelas mulheres havia fatos que as impediam de ser candidatas a esposa naquele momento. Em meio a esse desconcerto, o noivo chega à igreja, de maneira que só no altar descobrirá com quem se casa. O delírio do noivo é o delírio do coração apaixonado que salta avante e chega à seriedade de um compromisso como o casamento sem saber ao certo o porquê de estar ali. A escritora talvez sugira que há um elemento de insanidade e irreflexão em todo passo mais sério da vida do amor; não é certo, porém, que considere isso ruim.
Em As Cerejas, o coração que arde não é o de um amante, mas sim o da jovem que inadvertidamente presencia o ímpeto do ato sexual de pessoas que admirava. A menina da chácara se vê às voltas com dois parentes distantes, que vieram da Europa, e que agora residem por um tempo em sua casa simples. Fascina-a a aparente superioridade de suas posições e experiências, de forma que não desgruda os olhos de seus movimentos, refletindo e admirando cada um deles. Possivelmente aspira àquela vida mais livre e colorida. Seu peito arde. Esse ardor, contudo, se torna impressão carregada por toda a vida depois que testemunha numa refrega erótica aqueles dois parentes até então distantes um do outro. A convivência com eles torna-se despertar para a vastidão do mundo fora da pequena chácara a que estava confinada.
Em O Dedo, A Estrela Branca e O Encontro, o coração arde de formas ainda mais díspares. No primeiro, um episódio curioso numa praia serve de pretexto para que a narradora, ariana impetuosa, debata com seu lado libriano o melhor jeito de contar o caso, se com ímpeto ou comedimento; é um conto de feição metalinguística. No segundo, um cego suicida ganha novos olhos de um tipo estranho que falecera; os olhos, porém, não lhe obedecem. Fica a pergunta: o desespero do cego decorria da inaptidão dos olhos ou do desaparecimento de uma felicidade que quisera viver? E os olhos: têm ímpeto tão forte a ponto de se rebelarem contra quem os porta? Sua capacidade de discernir a luz do mundo é tão extraordinária que aponta para um sopro de vida próprio? No terceiro, o ímpeto decorrente da perda e a atitude extrema a que conduz mostram-se tão fortes a ponto de desafiar a morte, perpetuando-se numa lembrança além-túmulo.
Dentro dessa coletânea desconcertantemente sólida, dois contos se destacam pela premissa comum e pelo enternecimento que provocam. Ambos se passam no Natal e envolvem crianças pobres. Neles, a sensibilidade de Lygia se derrama, revelando, como em Confissão de Leontina, sua extraordinária capacidade de colocar-se no lugar do outro, mesmo que tão diferente de si. Dezembro no Bairro é a história de crianças que têm uma afeição toda particular para com o Natal. Encantam-se com ele, fazem planos, tudo com a simplicidade das crianças desprovidas de meios. Apesar da ternura que demonstram, conseguem ser cruéis como só as crianças conseguem ser. Exemplo disso é o episódio em que um renegado do bairro, Marcolino, tenta ganhar um trocado se fantasiando de Papai Noel numa loja local, mas os meninos o descobrem e dele caçoam até que não aguente mais a humilhação. O coração das crianças arde de forma cândida pelo Natal, tanto quanto arde com o escárnio de um renegado. Entre uma forma e outra de expressão, contudo, descobrirão a crueza da realidade de Marcolino e seu filho Maneco, colega deles, e então seus corações arderão não mais pela fantasia e travessura infantis, mas por força da compaixão adulta e consciente.
Muito embora Dezembro no Bairro seja um conto emocionante, não chega a competir com Biruta, provavelmente o ponto mais alto de toda a coletânea. Um menino pobre, órfão, ganha a vida vivendo de favor e trabalhando na casa de uma senhora da sociedade. A escassez de recursos não impede Alonso, o menino, de expressar o afeto encerrado em seu peito; como o entorno raramente lhe permite esse tipo de expressão, devota-a com ênfase ao cachorrinho Biruta. Biruta é levado e arteiro, tal qual os cachorros e os meninos pequenos que não precisam se preocupar com sua sobrevivência. Alonso, dada sua condição, não se permite esse tipo de desassombro, motivo pelo qual se consome de temor pelo futuro de Biruta: se ele não se comportar, Dona Zilu e o “Doutor”, donos da casa, acabarão pondo-o para fora. Biruta, entretanto, nunca se emenda, e a ansiedade de Alonso só faz crescer. Na Noite de Natal, Alonso tem grandes planos para o cão; sua companhia e alegria transformarão aquela comemoração solitária numa noite feliz. Acontece, porém, um imprevisto, que separa o cachorro do menino. É um imprevisto doloroso para Alonso, mas que não o deixa tão triste porque pressupõe o reconhecimento e alegria de Biruta, ainda que longe dele. A realidade ao final se impõe de forma ríspida, deixando Alonso desconsolado. Lygia, nesse conto, despedaça o coração do leitor, irmanando-o em compaixão ao coração de Alonso, que arde por faltar-lhe quem lhe corresponda o afeto, pela ansiedade da perda sempre iminente do amigo e pela decepção com adultos que se mostram mais hostis do que pudera imaginar. É o ponto alto do livro por ser a ilustração exemplar da necessidade de nos colocarmos no lugar do outro, escutar seu coração bater e deixar o nosso bater junto com o dele, a fim de nos tornarmos humanos no gesto, deixando para trás a condição fria e indiferente de antes. O coração que arde é um coração humano.
Ivan Marques, que escreve o posfácio, acerta ao dizer que Lygia extrai poesia dos elementos prosaicos do cotidiano, e que há o encontro de eros e tânatos na vermelhidão do coração que pulsa. De fato, a beleza da coletânea está na capacidade da autora de aquietar-se e sentir a pulsação por debaixo da superfície das coisas inertes, aparentemente sem vida. Em certo sentido, o exercício da alteridade pela compaixão que constitui o coração humano ardente, não difere de uma descoberta da vida pulsante no outro que a desatenção faz parecer objeto inerte. E, em se tratando de compaixão por um ser vivente, é inevitável que a morte se insinue e tinja o amor. O catálogo da vida que Lygia entrega ao leitor é único em sua argúcia e sensibilidade, não podendo passar despercebido por qualquer leitor empenhado na descoberta do mundo.
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