Resumo de Um Coração Ardente, de Lygia Fagundes Telles



Foi através da escuta de audiolivro que travei contato com Um Coração Ardente, de Lygia Fagundes Telles. Por ouvir os audiolivros em movimento, não tenho condições de anotar minhas impressões a respeito. Assim sendo, e por ter gostado sobremaneira dessa coletânea de contos, resolvi sentar-me e escutá-la detidamente, anotando enquanto escutava um resumo telegráfico. O propósito principal dessa empreitada era obter subsídios a fim de escrever um texto mais consistente a respeito do livro para este blog; percebi, no entanto, que as anotações que resumem os contos poderiam servir a outras pessoas - principalmente àquelas que já leram o livro e pretendem apenas recordar seus lances principais -, e por isso as disponibilizo neste blog. Desde já peço desculpas por eventuais erros na grafia dos nomes próprios, todos decorrentes do fato de não dispôr do livro físico.


Um coração ardente:

À beira da janela. Velho. Juventude. Vários gêneros literários. Um coração ardente. Política. Literatura e filosofia. Sem talento; apenas um coração ardente. Filho Atos tinha o mesmo coração. Medo do que viria. Amou, mas não ouviu estrelas. Ama mais, odeia mais, quem tem esse coração. Um coração assim seduz. Atos se matou antes do 20 anos. Namorada: Alexandra: pai se matou, mão desapareceu indo comprar pão. Endereço: descobriu que Alexandra morava num prostíbulo. Atos: noiva teve acidente de trânsito, morreu, e era evidente que Atos poderia se matar; e se matou, seu pai não conseguiu impedi-lo. Os outros dois filhos não tiveram o coração ardente. Seu pai: fé, esperança, caridade. Por que não investir na caridade e em Alexandra? Voltou ao prostíbulo. Alexandra estava livre. Devia haver pagamento. Houve. Tentou beijar, mas queria só conversar, o narrador. Tomaram chá. Perguntas sobre a vida de Alexandra. Propôs escola, pensionato, mais tarde um emprego. Alexandra ouviu em silêncio; ao final, só disse que o tempo deles acabara; que, em verdade, estava feliz ali; não queria sair dali, de perto de suas amigas; não seria ele um padre? Contou ao pai: achou graça. Uma semana depois, voltou para dar o endereço a Alexandra. O prostíbulo estava em rebuliço. Dedê se matara; uma das moças mais bonitas; Alexandra passara a noite fora. Tomou soda cáustica. Outra mulher se irritou com a presença dele; acusou-o de canalhice, como todos os homens. Dedê queria mãe, pai, mudar de vida, casar-se, ter um família, mas não, ninguém quis lhe dar a mão. O narrador entrou no quarto errado. Alguns passos fariam diferença. Acasos. Narrador sai do prostíbulo, segue pela rua, pensa nos acasos da vida, pensa que a vida valia a pena, vê uma flor de cabeça vermelha, pensa em Alexandra, louva a vida presente na flor, encosta a face numa árvore e sente como que um contato com o divino.

Dezembro no bairro

Cinema no porão de casa. Não deu certo. Os meninos não enxergavam nada e começaram a vaiar. A mãe determinou que devolvessem o dinheiro. Queriam dinheiro para fazer um projeto. Maneco era filho de Marcolino, o vagabundo do bairro. Maneco e irmão do narrador brigam sobre o destino do projeto; Marcolino pega o filho, bate nele e o leva para casa. Marcolino estava bêbado. Mãe: Maneco é doente e essa doença pega. Menino empesteado, com um pai daquele jeito. Afastem-se. Pai viajava muito. Já não acreditavam em papai noel, mas fingiam que sim. Empenho nos ritos de Natal. Tentariam ganhar dinheiro com um presépio de entrada paga. Como fazer o céu do presépio? Maneco daria o papel prateado das estrelas. O papel azul do céu seria com os irmãos. Tentariam pegar alguma coisa no palacete vago da avenida Angélica. Maneco não apareceu. Maneco seria um covarde. Pegaram lâmpadas e maçanetas de porta antes que o vigilante voltasse. Isoladas, as peças perdiam todo prestígio: maçanetas gastas e lâmpadas empoeiradas. Havia um papai noel na loja do Samuel. Descrença: aquela era uma loja mambembe. O amigo dos irmãos estava empolgado. O Papai Noel de fato estava lá. Papai Noel agradava o filho de um tipo que tinha dinheiro. Pareciam reconhecer o papai noel. Ombros curvos, jeito balanceado de andar. Disfarçava muito. Isso o denunciou. Ele estava com medo. Os meninos estavam empolgados. Devia ser alguém do bairro. Sapatos deformados: Polaquinho descobriu que era Marcolino, pai de Maneco. Os meninos o chamam como Marcolino. Os meninos riem em delírio. Marcolino tenta prosseguir como se nada tivesse acontecido. Samuel tenta intimidar os meninos. Os meninos voltam. Gritam: Marcolino, Marcolino. Marcolino arranca sua roupa. pisoteia ela, de raiva, não de bebida. Vai embora. A barba se espalhava com o vento. No outro dia, outro papai noel na loja, este desconhecido. Não deram bola. Os meninos brincam de desafio: entrar no porão de Maneco e gritar Marcolino. Cortiço: entram, assustam-se com a pobreza; Maneco estava sozinho deixado num colchão. Parecia completamente amarelo. Morreu na semana seguinte. Seus traidores, gritou Maneco. Os meninos voltaram em silêncio. Maneco fungava, em lágrimas, tentando esconder a ponta de uma estrela prateada.

O dedo

Andando numa manhã de sol numa praia selvagem. Vê um anel. Um dedo com anel. Ariana. Devia proclamar com ímpeto que achara um dedo. Mas narra agora sem convulsões. Não se deve escrever como uma possessa, ainda que seja surpreendente o fato. Afinal, o que havia de mais no dedo? Narradora é duas: calculista e impetuosa. Não é trezentas. Talvez na hora da morte esse conflito de ímpeto e cálculo também se instaure. Quer escrever um livro. Pode devanear em torno do achado? Sim, mas sem exageros. O sol batia em cheio na areia brilhante. Guardou uma pedra cinzenta muito polida, alguns outros objetos. Guardar o dedo? Não. Não era asco. O dedo parecia ser da mesma matéria dos peixes, não fosse a presença do anel. As fibras tentavam se libertar do aro de ouro. Faltava a última falange, a unha. A unha poderia espantar. Uma unha vermelha, por exemplo. Parecia um fruto do mar, pois faltava-lhe essa unha. Esmeralda encrustada. Devia ser mulher rica. Que mulher levaria um anel de esmeralda para o mar? Transatlântico? Titanic? Lembra-se de casos históricos. Uma suicida que entra de roupa mar adentro? A personagem de um crime passional? Latrocínio não, por conta do anel. Imagina o caso: casa numa praia deserta. Levar o anel? A calculista recomenda que sim. Temia que o mar o reclamasse de volta. Cavou um buraco, nele colocou o dedo, fechou-o, fez uma cruz. A água veio e apagou tudo.

Biruta

Alonso foi para o quintal com uma bacia cheia de louças. Chamou Biruta, o cachorro. Tem uma conversa com o cachorro. Começa a lavar os pratos. Biruta presta atenção. Leduína diz que entrou no quarto dela, subiu em cima da cama e mordeu uma carteirinha de couro que ela tinha. Biruta baixa as orelhas. Olha interrogativamente. Alonso confronta-o: ele sabia muito bem o que fizera. Leduína ordena que ande ligeiro com a louça. Por que Biruta não se emendava? Dona Zulu e Leduína já andavam impacientes. Lembrou-se do dia em que o cachorro tirou a carne da geladeira. A carne estava com Biruta. Alonso a resgata, diz que o pedaço fora ele que retirara. Sofreu a palmatória. Dona Zulu o fez ameaçando-o de devolução ao orfanato. Por que tanta raiva de Biruta, que só queria brincar? Por que Dona Zulu não gostava dele nem de crianças? Recomenda a Biruta que cresça e se emende. Leduína estende uma caçarola de batatas. Era seu jantar, com outros alimentos que estavam no forno. Jantaria sozinho. Era noite de Natal. Biruta se aquieta, o que o alivia. O filho de Leduína ganharia um cavalinho. Diz que, no orfanato, uma moça aparecia no Natal, era-lhe muito próxima, dizia que o adotaria, mas sumiu. Esperara por dois anos. Inutilmente cantava mais alto do que todos, na espera de que ela o ouvisse. Leduína tenta justificar com a dificuldade de criar crianças. Diz que Biruta ganhará presente com um dinheirinho que ganhara. Uma bolinha de borracha. Leduína menciona que ele esteve no quarto de Dona Zulu. O menino empalidece. Dona Zulu surge sorridente, surpreendendo-o. Pergunta se Alonso estava preparando seu jantarzinho. Pergunta se Biruta estava limpo. Desculpa-se com a patroa. Dona Zulu diz que irá a uma festa, onde haveria um menino doente que gostava de cachorros, e gostaria de alegrá-lo com Biruta. Leva Biruta no carro. Alonso se anima com aquele gesto afável dirigido a Biruta. Promete um presente na outra manhã para Biruta. Alonso deixa Biruta no carro, onde o “Doutor” se encontrava. Alonso beija o focinho do cachorro e o acaricia. Alonso faz perguntas a Leduína sobre o Natal. Imagina a prisão de Biruta, à semelhança de Jesus e Herodes. Afirma que Dona Zulu estava boazinha. Leduína ri ironicamente. Alonso se inquieta. Finalmente, Leduína afirma que Dona Zulu mentiu; Biruta não voltaria mais. Alonso se espanta. Biruta rasgou um pé de meia do quarto de Dona Zulu. Ela então disse ao “Doutor” que não queria mais o cachorro. O “Doutor” tenta adiar. Não adiantou. Soltariam o cachorro bem longe; depois diria que o cachorro escapara da casa do menino. Alonso perde as forças, desconsolado. Alonso vai ao quintal, à garagem, ao colchão, ao osso roído de Biruta, tira de debaixo do travesseiro a bola de borracha, e suspira por Biruta, desconsolado.

Emanuel

Ninguém parece acreditar que o amante de olhos verdes, com uma Mercedez branca, é de fato seu amante. Riem dela. Debocham ironicamente. Alice é instada a falar mais. Estão numa reunião social numa sala. Todos estão relaxados, só ela está tensa. Queria um conhaque. Afonso se diverte com ela. Ninguém acreditou que ela tinha um amante. Por que não? Era tão horrível assim? Não deveria ter exagerado nas características do amante. Mas tinha tantas vontades, delírios. Ninguém sequer se aproveitou dela. Não teve a alegria do supérfluo. Nunca teve nada: tinha um gato, porém, Emanuel, um gato de rua. Dizem que já estavam preocupados com sua virgindade. Era bonito? Emanuel é o que há de vir, segundo Lóris. Sonhara que alguém queria a sua boca silenciosa. Lóris a perscruta. Era uma quarentona sem a menor graça. Só lhe restava repetir a história, sustentar a mentira. Queria vomitar sua cara de freira sem vocação. Pior do que ser feia, é ser opaca. O dinheiro resolveria, poderia fazer a côrte. Não importa se as feministas cuspirem nela. O que o amado faz? Diz ser médico, pensa em dizer ginecologista. Era o que esperava: alguém que lhe apresentasse seu corpo. A que horas Emanuel virá, questiona Lóris. Alice se retrai. Responde que continua na mesma casa, com seu gato. Ri dizendo que ele era mais ou menos livre, pensando, no fundo, em seu gato: tinha uma dona, mas dava suas escapadas. Aproveita as ambiguidades. Emanuel era casado? Outra moça se dá bem no amor, ali, mesmo feia. Prossegue, instada por Lóris, que está bêbada, mas lúcida para atormentá-la. Deixa-se puxar. Encontrou-o na rua. Parecia solitário. Numa esquina. Emociona-se, talvez por conta do conhaque. Tem vontade de açúcar. Lembra do pai que levava chocolate quente todas as noites; no entanto, morreu cedo. Segundo o analista, tinha carência. Seu irmão matava gatos: era carência? Diz que os olhos dele brilham no escuro. Chove lá fora. Alice informa que tem que ir. Tocam a campainha. Quem será? Emanuel? Alice recua, diz que não podia ser, que ele tinha plantão no hospital. Lóris insiste em acuá-la. A Campainha persiste. Lóris triunfa. Afonso vai abrir a porta. Alice teme. Pensa em confessar-se. Afonso volta dizendo que era Emanuel, enquanto a janela se abre com a força da chuva, e a cortina, por força do vento, derruba objetos e garrafas.

As cartas

O pacote estava amarrado com uma estreita fita vermelha. Pareciam missivistas agitados, os autores das cartas. Não queria mexer nas cartas. Ainda guardavam um segredo? A letra de Luíza parecia desamparada como ela. Viveram juntos a infância, ela e Luíza. Mudou-se de cidade, e então Luíza desapareceu. Reencontrou-a e em seguida desapareceu para sempre. Encontraram-se num trem. Não a reconheceu de pronto. Abraçou, mas ficou menos entusiasmada por causa da impassividade da outra. Luíza visitaria a avó. Estava estranha, seu olhar não se fixava em nada. Tentaram conversar sobre o passado. Luíza estava indiferente. Pergunta finalmente sobre Francisco, o filho do juiz que virara candidato. Afirma que ele agora era seu amante. Começaram a se encontrar quando era mocinha, e ele, médico. Abandonou tudo para ficar perto dele. As rosas foram substituídas por remédios para insônia. Francisco, descobriu depois, era casado e com filhos. A avó desesperou-se. Tinha confiança nela, decepcionaram-se. Já era tarde quando soube do casamento. Seus gestos não se completavam. Já tentara abandoná-lo? Toma duas pílulas com esforço, sem água. Diz que suas vidas são um inferno, já se esbofetearam, mas continuam juntos. Visitaria a avó. Não queria se demorar. Para esquecê-lo deveria viajar para mais longe. Tenta fazer com que Luíza se trate. Luíza dorme. Luíza desembarcou longe de sua vista. Depois de dois meses, o irmão dela lhe telefona. Já sabe do que se trata. Deixara um bilhete, citava-a. Foi vê-la. Tentava se recordar de sua meninice pacífica. Michel lhe traz o pacote com cartas. Era para serem enterradas com ela, mas Michel prefere dar-lhes divulgação a fim de prejudicar Francisco, agora político. Tenta convencê-lo do contrário. Michel está irredutível. É preciso cuidar dos vivos. Liga para Francisco e o surpreende com as notícias. Francisco se torna amante com pena de si mesmo; apresentava-se como vítima. Perde a paciência. O apaixonado virou homem tomado de pavor. Não queimara as cartas? Aquilo não poderia acontecer. Francisco passa a atormentá-la. Fala em matar Michel. No sétimo dia, Michel lhe procura depois de voltar da fazenda da avó. Entrega-lhe o pacote de cartas. Desiste de dar-lhes divulgação. Telefona a Francisco. Francisco agradece, mas sem maior interesse, diz que mandaria alguém apanhar o pacote. Vencera as eleições; viajara com a família. As cartas continuam lá. Faculta-lhe dar um fim naquilo. Poderia queimá-las. Chega a acender o fósforo. As de Luíza se vão; as dele resistem. Eram cartas de Renato. Surpresa. A letra era diferente. Aquele não era um pseudônimo de Francisco. Era um outro amante. Quem era Renato? Começa a rir. Alivia-se queimando as cartas.

O noivo

Batiam à porta. Desperta. Era Emília? Era sim. Interpela-o sobre ter esquecido do casamento. Pergunta qual casamento. Emília vai buscar o café. Oito e meia. Quinta-feira, que casamento era aquele? Emília já não estava ali. Emília devia ter esquecido o tempo presente, se confundido. Lembra-se de uma namorada que fazia cerâmicas, bibelôs. Ela agora fazia curso de escultura. Fuma. Pensa em pegar um cinema com Naná à noite. De quem seria o paletó ali estendido? Surpreende-se. Parece novo. Então Emília estava certa? Havia mesmo o casamento. Pela roupa, devia ser o padrinho. Emília insiste no casamento. Vê-se no espelho. Examina a roupa mais uma vez. Cordiz era o nome do alfaiate, que nunca ouvira. Convida Emília a entrar. Sua maleta não estava ali. Perdera a memória? Como, se se lembrava de tudo? Era Miguel, advogado, quarenta anos, trabalhava na Goldsmith, Pedro era seu chefe, Naná sua amante. Vê o retrato da mãe. Sente-se firme no presente. Ainda não se lembrava do casamento. Que noiva seria? A noiva se parecia com as daqueles príncipes, que vêm incógnitas de um reino distante. Relembra uma amante, Dora. Mas Dora já estava casada. Com quem se casaria? Não podia perguntar quem era. Naná era desquitada, então não poderia casar na Igreja. Rosana era viúva, mas não poderia ser. E Jô? Fazia tempo. Lembra-se do último encontro, quando dissera que achava Mozart um chato. E Cecília, Amanda, Regina, Virgínia (que estava morta)? Emília volta com o café. Abandonar o casamento? Porém não sabia até que ponto se comprometera. Tudo em ordem, Emília? O senhor é quem sabe. Barbeia-se, machuca-se. Não sabia até que ponto tinha ido. Já estava na hora da cerimônia. Frederico entra. Como ele ainda estava assim, faltando apenas dez minutos? Frederico era seu amigo mais querido. Ainda nem tomara banho. Passou por Emília, Emília chorava, não iria, pois não gostava de ver. Entra no carro. Deixou-se conduzir. Já estavam diante da Igreja. O corte do barbear persistia em sangrar. Quanta gente! Seguiu como um autômato. Frederico impelia-o para frente. Perfumes de flor, nódoa no lenço. Viu sua tia: estava de preto. Naná estava lá, triste. Viu Pedro. A noiva chegou, tia Sônia avisou. A noiva surgiu lentamente, como se antes estivesse submersa. Um véu cobria-lhe o rosto. Laura? O véu era espesso. Não adivinhava quem estava por detrás. Margarida? A mão enluvada era leve, como se vazia. Entregou-se ao momento. Lembrou-se de um brincadeira de roda, em que alguém se escondia. É como se estivesse à espera por anos. O véu foi subindo devagar. Era alguém em quem não tinha pensado, apesar de ter recordado tantas. Beijou-a.

A estrela branca

Como contar? Trata-se de um pesadelo? Olhos? Chegou à ponte, cego, orgulhosamente, só a morte poderia libertá-lo; ficou ouvindo as águas do rio correndo lá embaixo; discretamente, segurou o gradil de ferro; lembrou-se da estrela branca que vira pela última vez. Sua cegueira fora repentina e os médicos não encontravam explicação para ela. Fugiu do hospital e procurou aquele rio tumultuoso. Antes, porém, que saltasse, alguém o agarrou pelo braço. E se o homem chamasse a polícia, devia ser proibido se matar? O homem pediu o adiamento do suicídio. Dr. Ormúcio. Era médico, tinha o tom obstinado dos médicos. Conta sua história ao médico. Pede paz e que o deixe seguir seu caminho. O médico então conta que vinha fazendo descobertas importantes, que era válido tentar seu novo tratamento: se não funcionasse, poderia voltar à ponte. O intruso parecia bem intencionado. Era só, não tinha família, o cego. Foi com o médico, como uma criança. Foi apresentado ao empregado da casa. Dias calmos, indiferentes. Ormúcio anuncia que a operação é possível, está em condições. Demora mais um pouco, finalmente convoca-o ao hospital. Foi com ele, como um autômato, nas mãos daquele homem que ora se afigurava um deus, ora um demônio. Vertigem. Entusiasmo de menino se preparando para uma festa. Ormúcio o apresenta a um homem que sabia que morreria logo, falência múltipla dos órgãos. O padecente desejava falar com ele antes de morrer. O padecente lhe legaria os olhos. Herança de um par de olhos; risos que viram soluços. Padecente: viverei muitos anos ainda então; os meus olhos serão dados porque é bem jovem, se não fosse, não os daria; continuarei em você. Ormúcio se desculpa pelo delírio do padecente. Desejava ver de novo a estrela branca. Espera. Reza antes da operação. Começa a ver um armário branco, um crucifixo, uma cadeira. Tem vontade de gritar. Era noite. Começa o horror ao tentar procurar a estrela. Queria olhar para o céu, mas os olhos pareciam não obedecer, baixavam-se ao jardim. Fora enganado: aqueles olhos nunca seriam seus, eram independentes. Tenta domá-los à força. No rosto, só os olhos do morto pareciam ter vida. Ormúcio e o morto triunfaram; mas, e ele? Foge do hospital. Deixaria Ormúcio na dúvida. Como se vingar do morto? Na ponte, os olhos voltam a lhe obedecer. Obedecem apavorados, conscientes do plano. Não zombam dele. Ele desaparecerá como a sua estrela no negrume do céu.

O encontro

Vasto campo. Névoa: verde pálido e opaco. Penhascos. Sol espiando através de uma nuvem. Onde vira a mesma paisagem? Era a primeira vez que ali estava. Era tudo inédito, mas falava do passado, das profundezas da memória. Bosque. Chega à boca do abismo cravado entre as pernas. Não fora sonho. A lembrança era mais exata. Parecia próxima de um perigo. Poderia fugir, mas prosseguia, avançava mesmo assim. Tentava se convencer de que nunca estivera ali. Vê uma aranha na teia, armadilha. Em que sonho caberia uma paisagem tão minuciosa? E se estivesse sendo sonhada? Devia fazer parte de um sonho alheio. A dor da mão ao ser ferida por um espinho foi real, poderia fazer fugir do sonho de outrem. Não deveria buscar explicações, deveria simplesmente esperar a explicação. Vê uma fonte e, ao lado, uma moça vestida de amazona; estava ansiosa, à espera de alguém. Ela lança um olhar desinteressado, pois pensara que fosse a pessoa que esperava. Seu traje era antiquado. A sensação de que já vira a moça. A moça, interpelada, diz morar em Valburgo. Parecia muito desesperada, tranquilamente desesperada. Era uma resignação frágil. Valburgo era um nome que não lhe era desconhecido. A moça diz que esperava uma pessoa. Pergunta se Gustavo, sem saber por quê. Ela confirma que sim, que era Gustavo. Disse que não viria nunca mais. Lembra-se de cena violenta envolvendo Gustavo. A moça parecia com alguém conhecido. Talvez não fosse possível procurar Gustavo. Ela diz que vai embora. Levanta-se, sopra um vento gelado. O vento tirara a moça da apatia, que sai cavalgando velozmente. Não pôde retê-la. Em meio ao caos, percebe que a moça era ela, em outro tempo. A pluma do chapéu lhe recordara. Tentou seguir a moça. Era difícil. Gritou, tapando os ouvidos para não escutar o precipitar no abismo.

As cerejas

A madrinha pergunta pelos óculos. A preta Dionísia prepara comida. Tia Olívia. Marcelo muito louro. Cerejas despencando no chão. De todo esse cenário, apenas as cerejas permaneceram, de algodão. A visita chegou inesperadamente, a prima Olívia. Ela era de muito luxo. O que fazer para recebê-la, assim tão de repente? Marcelo também chegara de improviso. Tia Olívia reclama do calor, pergunta pelo rapazinho, filho do Romeu, primo-irmão do Alberto. Olívia diz que não se lembrava. Marcelo estava de férias? Tia Olívia era fascinante. Portava cerejas de cera. Na Europa, as cerejas eram tão carnudas, tão vermelhas. Marcelo também morara na Europa, com o avô. Tia Olívia dizia que não desejava dar trabalho. Madrinha se desculpava pela chácara, ao mesmo tempo que lhe enaltecia. Marcelo poderia acompanhá-la em cavalgadas. Marcelo um dia iria embora de repente. Marcelo declara que Tia Olívia era bonita, afirma que o galho de cerejas no peito era vulgar, o perfume muito forte. Perdia Marcelo sempre. Marcelo galopava e se refugiava em seu quarto. Eram dias de calor atroz, antes da tempestade. Madrinha procurava por seus óculos. Só Tia Olívia parecia impassível. Tia Olívia defende o menino, que aos outros parecia esquisito. Estava calor. A chuva finalmente caiu depois do jantar. Tia Olívia, dizendo ter dor de cabeça, recolheu-se mais cedo. Marcelo disse que leria. A tempestade, a casa às escuras, o fuzível queimara. Era preciso levar velas à Tia Olívia. Relâmpago: os dois corpos tombando no divã - Marcelo e Tia Olívia. Volta dizendo que os dois deviam estar dormindo, não responderam. Tem febre, vertigens. Um sarampo muito forte. Por dias. Choro dolorido. Marcelo foi embora nesse ínterim. Tia Olívia fez o mesmo dois dias depois. As cerejas dos seios atraem seu olhar; Tia Olívia percebe; as cerejas são presenteadas à menina. Lamentam a partida de Olívia, mas não a de Marcelo. Marcelo e Romeu sempre às voltas com cavalos, montados. Um ano depois: Marcelo morre de uma queda de cavalo. A sua estranheza ainda incomoda.

Posfácio - Poesia das coisas, por Ivan Marques

A maior parte das narrativas em primeira pessoa, personagens que sabem pouco de si mesmos e se descobrem na narrativa. Subjetividade hipertrofiada do eu-lírico. Primeiro conto: é mais poeta do que filósofo; vida louca; lances trágicos. Coração: centro primitivo e selvagem da existência humana. Pulsão de vida, pulsões contrárias indissociáveis. A cor vermelha - eros e tânatos - impregna todas as páginas. A vermelhidão da loucura. Contos escritos entre a década de cinquenta e o começo dos anos oitenta. A escritora possuiria ela mesma um coração ardente. Busca do sonho e seu desvirtuamento, irrupção do realismo. Ardor do delírio e detalhamento do cotidiano. Espíritos famintos cujo lirismo está na pequenez das coisas. Poesia das coisas. Linguagem natural e comunicativa. Tradição: escritores praticantes da simplicidade. Seu universo ultrapassa os limites do feminino e da burguesia. Esta coletânea o comprova em sua diversidade. Pobreza: carência que desperta desejos e que lhes serve de contrapeso. Categorias do tempo e do espaço relativizadas, tal como nos mitos e contos de fada. Lirismo e realismo. Situações intrigantes. Fatos corriqueiros que deixam de sê-lo por força de seres desgovernados. Espanto frequente. É preciso atingir a queda das máscaras. Lirismo a partir de associações simples e diretas. Como se a poesia fosse natural. Presença de insetos. Lirismo como percuciência do concreto. Vivificação de coisas inertes; abstratização das coisas concretas. A beleza literária torna a realidade mais densa e perceptível. O dedo fala da construção literária. Os delírios aqui narrados são submetidos a uma detida vigilância. Surrealismo curtido por uma notação miúda do cotidiano. Objetos insignificantes subitamente iluminados. Vistos de perto com um coração ardente.

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