Plataforma, de Michel Houellebecq

Alfaguara edição brasileira


O traço mais característico a ser ressaltado na leitura de Michel Houellebecq é a permanente sensação de que se lê uma obra-prima destinada ao cânone, alta literatura da primeira à última palavra. Essa afirmação, ouvida sem maiores esclarecimentos, naturalmente conduz à conclusão de que se trata de um escritor de tom grandiloquente, hábil no manejo dos recursos de boa impressão que a tradição lhe legou; entretanto, essa é uma conclusão inteiramente equivocada: a grandeza do texto de Houellebecq está justamente na sutileza e transparência de sua qualidade - em outras palavras, lê-se as coisas mais banais e até asquerosas percebendo-se as qualidades e intenções mais elevadas que se escondem por detrás.

Plataforma é um livro do começo dos anos 2000, anterior a Submissão, livro que levou o autor francês ao conhecimento de um público mais vasto do que o que já conquistara. Nele, acompanhamos pouco mais de um ano da vida de Michel Renault, funcionário público francês de nível mediano, ocupado no Ministério da Cultura de questões práticas relativas à contabilidade, cujos contatos cotidianos com a arte contemporânea de que seu setor cuida não são capazes de lhe despertar nenhum sentimento mais vibrante do que a indiferença. O arco narrativo se estende do final do ano 2000 até meados de 2002; o principal da ação, contudo, se concentra em 2001, quando a vida de Renault, até então regular e sem sentido, parece avançar em substância.

Renault não vive problemas financeiros, não é ambicioso, apenas deseja ficar quieto no seu canto, vendo seus programas de televisão favoritos, muito inocentes em seu conteúdo, e pagar por sexo nas oportunidades que surgirem para desfrutá-lo. Gosta demais de sexo, talvez seja o principal objeto dos seus pensamentos, mas, em geral, vive-o de forma modesta, sem, a rigor, conferir-lhe cores perversas. Evita o contato humano; isso não significa, porém, que seja um antissocial manifestamente perigoso: chega a sentir certa simpatia por uma companheira de trabalho amigável e a vislumbrar traços do humano no sexo pago de que desfruta. É uma vida que parece irremediavelmente vazia aos olhos do leitor.

Ao final de 2000, o pai de Renault morre. Não viviam na mesma cidade, não desfrutavam de uma relação de grande afeto, mas também não se detestavam: frequentavam-se pontualmente. Muito embora já apresentasse certa idade, as circunstâncias da morte recomendam uma investigação maior, já que há traços de assassinato. Por que alguém mataria uma pessoa como o pai de Renault, inofensivo e sem inimigos? O luto e as investigações não causam qualquer abalo em Renault, que lida com elas com desassombro, como lidaria com uma questão burocrática ou fiscal qualquer. Descobre-se que o velho tinha relações com a jovem faxineira de origem islâmica que trabalhava em sua casa. Era uma relação consentida, mas o irmão da moça, com o intuito de dar um bom recado ao amante, acaba por estilhaçar seu cérebro e matá-lo. Renault descobre isso, confronta o assassino, porém, mais uma vez, não se sobressalta. Herda um bom dinheiro. O leitor, sem perceber, acaba por não se sobressaltar igualmente.

Servindo o luto como pretexto, Renault decide tirar férias no fim do ano e viajar à Tailândia, destino que lhe atrai especialmente em razão do turismo sexual que oferece: ele é fortemente atraído pelas mulheres asiáticas, e julga que não há nada igual no ocidente, nem mesmo mediante paga. Conquanto o objetivo sexual seja destacado, Renault embarca numa excursão normal, com variados tipos franceses; de todo modo, o sexo se misturava com o dia a dia de tal forma no turismo tailandês, que não parecia haver necessidade para uma excursão autodeclarada.

Um bom pedaço da primeira das três partes do livro é dedicada à viagem à Tailândia. Nela, o leitor é levado a habitar o espaço mental de Renault, no qual há muito vazio, despontando o prazer sexual como único objeto de preocupação, não só porque fosse grandioso e expansivo, mas muito por força de o vazio ao redor ser absoluto. Nessa seção, é possível que muitos leitores abandonem o livro. Houellebecq faz o personagem principal confessar sem sobressaltos a inteireza de suas concepções sobre o sexo, as mulheres, as prostitutas asiáticas e a vida como um todo. A sensação de asco e repulsa é constante, não tanto porque os desejos de Renault fossem especialmente perversos, e sim porque a nudez daquela preocupação solitária e a objetificação do outro que o desejo sexual acaba produzindo nessa circunstância, incomodam sobremaneira. Renault objetifica, mas o leitor não se anima a condená-lo; há certa pureza em toda aquela obsessão triste; quem sabe haja li genuína humanidade; pressente-se que Renault não tem forças para ser um verdadeiro algoz, de certa maneira está perdido e entorpecido, não constitui uma verdadeira vítima, mas sim, está perdido. 

No curso da viagem e de suas experiências sexuais remuneradas, esboça-se a possibilidade de um contato humano genuíno. Valérie, uma francesa integrante do grupo que viaja, é doce, meiga, esperta e atrevida até certo ponto, diferente das outras mulheres ocidentais que se projetam na mente de Renault, e, em certa medida, semelhante às prostitutas asiáticas de que tanto gostava. Não se trata de passividade ou submissão; mais à frente o leitor ficará sabendo de aspectos muito ativos da vida de Valérie; trata-se, isto sim, de uma afabilidade, uma certa pureza que existiria em Valérie e que não mais seria encontrada no Ocidente. Renault custa a dar um passo definitivo na direção da Valérie; quando isso finalmente acontece, o casal já se encontra de volta à França.

Renault, que até então não tivera um relacionamento sério, vê-se engajado num namoro dos mais promissores. O ano de 2001 é passado ao lado de Valérie. Ela é uma executiva do setor de turismo muito bem-sucedida e remunerada, que, de passo em passo e sem uma ambição desmedida, conseguiu alcançar um alto posto dentro de uma pioneira corretora de viagens francesa. O casal vive o sexo intensamente. Desse modo, apesar da superação do sexo pago tailandês, a vida de Renault continua a girar em torno desse tópico, com a diferença de que agora é personificado por Valérie, o que lhe confere traços de complexidade e humanidade. Como o padrão mental de Renault continua o mesmo, é como se o episódio tailandês continuasse, só que agora envolvendo Valérie, o estreitamento dos laços entre ambos, a coabitação e, o mais importante, o novo projeto profissional de Valérie, do qual participa, e que - como seria de se esperar de algo vindo dessa fonte - tem a ver com o turismo sexual.

Apesar da monotonia das obsessões de Renault, a narrativa a partir do namoro com Valérie é permeada de acontecimentos, diálogos e reflexões importantes, os quais vão se desenvolvendo numa curva ascendente até atingir o inesperado clímax, que contribui decisivamente para jogar luz sobre a pasmaceira psíquica do personagem e permitir ao leitor extrair daí suas conclusões.

Plataforma é uma obra cujos temas principais são o sexo e a ocupação do mundo pelos europeus. Ao dar voz sem filtros a alguém como Renault, Houellebecq, com a argúcia e lucidez que lhe são peculiares, permite ao leitor investigar, num nível mais profundo, a anatomia dos desejos humanos e suas consequências sobre esse impulso expansionista europeu. Há, por certo, abstração da humanidade do outro e sua instrumentalização; enfim, uma nova forma de colonização. Todavia, há certa pureza e humanidade na mente de alguém como Renault que lhe impede de ver verdadeiramente o caráter deletério do que faz, obcecado que está por todos os sentimentos e reflexões despertados pelo sexo. Os personagens têm consciência das consequências negativas do turismo sexual até determinado ponto, mas parecem estar de tal forma entorpecidos que não conseguem sequer extrair culpa dessa percepção.

Ao mesmo tempo que é um livro em que subjazem os temas do sexo e da colonização, Plataforma é um livro sobre o homem europeu contemporâneo e o vazio de sentido da sociedade em que vive. O ambiente mental de Renault, sua vida de modo geral, apontam para isso. Há a percepção desse vazio; mas o torpor é tão grande - e o dinheiro suficientemente disponível para prolongar essa alienação -, que pessoas como Renault só fazem persistir nesse estado. O mundo, porém, não parece ser um ambiente que tolere indefinidamente os sonâmbulos da existência. Fatos aterradores acontecem aos personagens, inclusive na Europa, sendo disso um exemplo emblemático o assassinato do pai de Renault; a princípio os personagens não têm recursos psíquicos para ficar em alerta, mas, com o tempo, a realidade acaba por se impor - “se impor” em termos: Renault, por exemplo, não chega a despertar verdadeiramente, logo voltando ao torpor habitual.

Um aspecto que merece ser destacado em Plataforma é o fato de ser narrado em primeira pessoa. A escrita de Houellebecq é tão poderosa, e os elementos a cativar a atenção do leitor são tantos, que este demora a perceber que o livro é narrado por Renault e extrair daí as consequências necessárias. À medida que a leitura vai se aproximando do final, no entanto, esse aspecto ganha importância, e não há então como deixar de fazer a seguinte pergunta: o torpor existencial de Renault sempre lhe acompanhou nos exatos termos em que foi narrado, ou os acontecimentos por que passa nas últimas páginas lhe deixaram marcas tão fortes que, depois deles, o recorte da vida acabou por ser feito privilegiando uma nota única acompanhada de alienação quanto ao resto?

Apesar da primeira pessoa, em alguns momentos há mergulhos na intimidade de personagens em situações nas quais Renault não se encontra. Um pequeno apontamento à determinada altura, entretanto, sugere uma confidência anterior. Não soa verossímil, porém.

Plataforma, sendo a obra primorosa que é, sugere essa e muitas outras leituras. É inevitável sentir vontade de fazer vários projetos de releitura, ora sob um aspecto, ora sob outro. O diálogo com Submissão, por exemplo, é evidente: a Europa desprovida de sentido de Renault e François é a mesma; a previsibilidade do fim dessa pasmaceira é igualmente insinuante em ambos; a antissociabilidade e taras dos dois personagens são muito parecidas; nos dois casos, há a morte do pai e o recebimento de uma herança; até certo fascínio pela Chinatown parisiense aparece nos dois livros.

Michel Houellebecq é um autor fascinante. A nudez do humano que revela pode assustar e causar nojo no começo, mas acaba por conquistar o leitor, dada a integridade do relato. O desejo pela leitura de suas obras é inevitável; a alegria por saber que está vivo entre nós, produzindo, uma alegria indisfarçável. Quem sabe, com a leitura de sua produção completa, Thomas Mann finalmente passe a ter companhia no pódio dos meus autores favoritos. Estou animado.

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Comentários

Rafael Sousa disse…
Gostei demais dessa indagação-chave aqui: "o torpor existencial de Renault sempre lhe acompanhou nos exatos termos em que foi narrado, ou os acontecimentos por que passa nas últimas páginas lhe deixaram marcas tão fortes que, depois deles, o recorte da
vida acabou por ser feito privilegiando uma nota única acompanhada de alienação quanto ao resto?" Será que ele conseguiu separar o luto ou tudo o influenciou? E quando ele fala sob o ponto de vista dos outros personagens, como você comentou, como ele sabia de tantos detalhes, apesar das confissões prévias? De qualquer forma, é um livro muito interessante, com várias nuances polêmicas e desperta muitos questionamentos sociais. Ademais, belíssima resenha; sem dúvidas, uma das melhores que encontrei até o momento.
Muito obrigado pelo elogio.

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