O Eleito, de Thomas Mann


nova edição de O eleito de Thomas Mann


O Eleito, de Thomas Mann, é por ora o último livro do autor publicado pela Companhia das Letras como parte do esforço de trazer suas obras completas de volta ao público, e o último que li. Desde que a editora começou essa empreitada, tenho acompanhado o ritmo das publicações para me inteirar da obra do escritor alemão, de modo que não me apresso procurando seus livros já publicados em português mas cuja reedição está pendente; nesse percurso, li todos os reeditados, Doutor Fausto, Os Buddenbrook, A Morte em Veneza, Tonio Kröger, A Montanha Mágica, As Cabeças Trocadas, As Confissões do Impostor Felix Krull e, por fim, O Eleito. Os Buddenbrook se tornou meu livro favorito da vida, coisa rara para mim, que não sou dado a livros da vida. Thomas Mann, por sua vez, se tornou meu autor favorito, talvez o único, já que também não sou dado a autores, estilos ou literaturas nacionais favoritas.

O que impressiona em Mann é a regularidade da sua excelência: não considero nenhum dos oitos títulos lidos menos do que muito bons; as variações de avaliação partem de muito bom, passando por ótimo e excelente, até chegar a excepcional. Impressiona igualmente sua versatilidade, a capacidade de transitar entre estilos, personagens, enredos e cenários tão díspares; não é um escritor obsessivo por um tema ou estilo, ao menos não na superfície. Produz um romance exemplar em todos os sentidos com Os Buddenbrook; revisita a tradição fáustica imbuído da mais lúcida consciência sobre seu tempo e país em Doutor Fausto; ensaia uma compreensão total sobre a Europa e o fim de uma era n’A Montanha Mágica; adota a dicção oriental n’As Cabeças Trocadas; parodia a literatura da Idade Média n’O Eleito.

O Eleito é um livro de reviravoltas e acontecimentos impressionantes, mas não rocambolesco; isto porque sua ação é concentrada em torno de uma única família, sem se perder em tramas paralelas ou personagens secundários, apesar de existentes estes; daí, inclusive, os alemães o considerarem uma novela, e não um romance. Nessa concentração se assemelha a uma de suas fontes, Édipo Rei, de Sófocles, exemplar no seu emprego em ação, tempo e espaço.

O livro medieval de Mann trata de um casal régio no que seria hoje a Bélgica, perdido em algum momento daquele longo período histórico, que anseia, junto com seu reino, a geração de uma descendência. Muito anseiam, muito suplicam a Deus, até que finalmente a graça é dispensada, e dispensada em abundância: nascem ao casal gêmeos, Víliguis e Sibilla, ficando assim resolvida a questão sucessória. À alegria do nascimento, contudo, soma-se a tristeza da morte da mãe no parto, de modo que as crianças são criadas exclusivamente pelo pai, que não se casa novamente e lhes cumula de todos os cuidados pertinentes, devotando à filha, porém, os carinhos da predileção.

A predileção não leva à rivalidade entre os gêmeos, muito pelo contrário. Aos dezessete anos, na noite da morte do pai, decidem se deitar juntos, dando então início a um relacionamento incestuoso. Sempre houve entre ambos extrema afeição, admiração e respeito: escondia-se, entretanto, em meio a sentimentos tão nobres, a percepção de que eram únicos, elevados acima dos outros homens, portanto dignos apenas um do outro. Não há aqui, como em Édipo, o incesto em decorrência de uma falha de conhecimento: há vontade deliberada, motivada tanto por sensualidade quanto por imperativos da razão distorcida.

Naturalmente, a coabitação secreta leva à gravidez. Só nesse momento o casal desperta para a infâmia da conduta que praticavam, apressando-se na sequência em encontrar uma solução à criança. Um servo fiel da corte, que não se deixa escandalizar pela revelação, ajuda-os nessa tarefa: Víliguis anuncia genericamente que, em virtude de grandes pecados, peregrinará em penitência rumo à Terra Santa, deixando o reino sob a regência de sua irmã; Sibilla, por sua vez, dá à luz secretamente na casa do servo fiel, ao qual também confia temporariamente a regência. Não sendo possível manter a criança, um menino, em segurança no reino, e sem perder de vista ser ela fruto do mais indecente pecado, decidem confiá-la inteiramente à vontade de Deus: em gesto que recorda a infância de Moisés contada no Êxodo, colocam o menino num barril; no barril, tecidos finos, uma tabuleta com a inscrição de sua origem hedionda e dois pães recheados de ouro, que deverá servir ao custeio de suas despesas; e depois colocam o barril num barco e o lançam ao mar. Se Deus não puder conter no mundo fruto de pecado tão grave, as ondas consumirão o menino; se, entretanto, decidir dispensar ao caso misericórdia, alguém o encontrará e disporá de meios para garantir-lhe a subsistência. Lançada a criança ao mar, sobrevém a notícia de que Víliguis, como esperado, morreu no curso de sua peregrinação; de sua parte, Sibilla, duplamente enlutada, passa a governar o reino em espírito austero e penitencial, sem se render às inúmeras propostas de casamento que lhe chegam de toda a cristandade, o que causa inúmeros problemas.

Desde o começo sabemos do incesto e do triunfo final, que é a ascensão do filho incestuoso ao papado. Entre um ponto e outro da história, contudo, há vários outros fatos relevantes, tais como o encontro do menino, sua criação, a descoberta de seu passado, um novo episódio de incesto, este sim edipiano, penitência atroz e, finalmente, redenção.

O Eleito constitui o exercício literário de Mann na linguagem e atmosfera medievais. As novelas de cavalaria, as vidas dos santos e os contos de fada se fazem sentir. O narrador - um monge beneditino irlandês que escreve no famoso mosteiro de Sankt Gallen, no que hoje é a Suíça -, é bastante moderno em suas constantes interferências e reações à narrativa, inclusive interferências de cunho metalinguístico. Seu estilo tem o colorido das tapeçarias medievais e a ingenuidade dos contos de fada. É como se Mann olhasse na direção daquelas representações pictóricas e identificasse ali um modo e ritmo de vida peculiares, os quais, ao se tornarem objeto de narração, trazem a própria narrativa para junto de si, impregnando-a de suas características. Dessa maneira, ao narrar, o monge urde uma tapeçaria em frente ao leitor. A representação do mundo assim feita é tão peculiar da Idade Média, que não poderia ser empregada a fatos de outras épocas: soaria inevitavelmente anacrônica e pedante. A ingenuidade dos contos de fada, identificável na pureza das virtudes e vícios dos personagens, ajuda a apaziguar um pouco a pungência dos fatos narrados, os quais, de outro modo, soariam excessivamente escandalosos e repugnantes, mesmo ao leitor moderno.

A moral d’O Eleito está na superabundância da misericórdia de Deus: onde abundou o pecado - duplo incesto -, superabundou a misericórdia divina - eleição ao papado. Não se trata, no entanto, de uma misericórdia que dispensa arrependimento e expiação: esta, no livro, é capaz de escandalizar os modernos ainda mais que as relações carnais entre irmãos. Ao final, porém, os extremos de pecado e expiação instruem quem os viveu, isto é, o futuro papa,  no sentido de que nem sempre se fazem necessários, sendo mais sábio, da parte da Igreja, ganhar as almas para Cristo mediante uma adequada medida de rigor, em vez de ultrapassá-la e perdê-las irremediavelmente ao demônio. A superabundância da misericórdia de Deus se deve, portanto, não só à imensidão dos pecados que cobre, mas também à prodigalidade com que é dispensada. Sendo a misericórdia tão excelsa, perpassa a narrativa a ideia de que o pecado, ao fim e ao cabo, pode ser um instrumento desejado e necessário da manifestação da glória de Deus; Thomas Mann toca aqui no fértil debate católico a propósito da “felix culpa”, que articula indagações tão relevantes como esta: a encarnação e a salvação de Cristo foram um segundo plano engendrado por Deus depois da queda do homem, ou a própria queda foi desde o princípio antevista a fim de permitir a encarnação e a salvação de Cristo? Exemplo dessa noção se encontra em trecho do imponente hino entoado no início da solene Vigília Pascal do rito latino:

Ó pecado de Adão indispensável, 
pois o Cristo o dissolve em seu amor; 
ó culpa tão feliz que há merecido 
a graça de um tão grande Redentor!

Os diálogos com a tradição literária estabelecidos por O eleito são inúmeros. Além das histórias de Édipo e Moisés e do tema da “felix culpa”, é possível mencionar os motivos da briga entre irmãos; da descoberta e busca pelas origens pessoais; da conquista da mão da princesa mediante a vitória em batalha; e da penitência extrema semelhante a dos antigos padres do deserto. As vidas dos santos são recriadas a partir de modelos extraídos de fontes medievais tais como a Legenda Áurea; entre elas se destacam as vidas de São Julião e São Simeão, o Estilita.

A edição da Companhia das Letras é completada por um informativo texto de Walnice Nogueira Galvão. O texto de Walnice foge um pouco aos padrões do aparato crítico das obras de Mann que a Companhia vem produzindo, pois, antes de adentrar nas especificidades da obra, traz considerações interessantíssimas sobre a introdução das obras de Mann no Brasil, o contexto intelectual em que se deu, a importância dos estudiosos centro-europeus que vieram para cá, a mudança de paradigma no campo da tradução dos clássicos levada a efeito pela Editora Globo entre 1930 e 1950, entre outros tópicos. Na parte referente à obra propriamente dita, Walnice pontua, entre outros, a capacidade de Mann em parodiar textos clássicos, tal como em José e Seus Irmãos, em que dos poucos versículos bíblicos extrai material para uma portentosa tetralogia; assim como o contraponto existente entre José e O Eleito: naquele, as relações fraternas são tão esgarçadas que os irmãos ressentidos chegam a vender José como escravo; neste, a fraternidade é tão forte que se confunde em laços conjugais, degenerando, portanto, em soberba e incesto. Em ambos os casos, há a desfiguração do elemento fraterno.

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Para assistir aos vídeos que produzi para todas as demais obras de Thomas Mann já publicadas pela Companhia das Letras: https://www.youtube.com/playlist?list=PL_WHoKoH0rguv9v0aXTSgXKQfpyyyom_s



Comentários

Cleuzita Apontes disse…
Que texto bem feito!

Muito bom conhecer seu livro favorito de Thomas Man, sendo esse também o livro favorito da vida. Levando em consideração que você não é dado a "livros favoritos da vida", torna esse ainda mais relevante pra mim. Ainda não li Thomas Man, mas já ganhei o livro dele "Sua Alteza Real". Um abraço pra você, feliz 2020.
Obrigado pela visita ao blog. Pretendo ler Sua Alteza Real assim que for reeditado pela Companhia das Letras. Feliz 2020 para você também!!!
Unknown disse…
Amei o seu blog, assim como te acompanho no YouTube há bastante tempo. O que mais me fascina é que sempre nos trás e apresenta coisas novas, novidades do mundo dos autores e livros, que, pelo fato de não ter muito tempo disponível para pesquisa, sempre tento prender minha atenção ao seu canal. Vi que deu uma parada na divulgação de novos vídeos e fiquei muito feliz em vê-lo voltando com novos conteúdos. Te desejo sucesso e um feliz 2020 e fique sempre conosco. Abraços.
Agradeço muito por sua visita ao blog. Fico contente por conseguir apresentar coisas novas às pessoas: não consigo guardar descobertas preciosas só para mim. Um ótimo 2020 para você também. Grande abraço!
Almasta disse…
Querido Lucas. Após mais um primoroso texto seu fiquei bastante instigado em ler esta novela. Como você sabe o Mann ainda não se encontra entre os autores de minha predileção, mas estou aberto para redescobri-lo lendo suas obras magnas . São blogs como o seu que estimulam o interesse e a descoberta de obras imprescindíveis para o leitor exigente que prima por leituras com realização estética de alto nível.

Torço para que você alcance um público cada vez maior e qualitativamente à altura de seu empreendimento. Felicitações.
Agradeço pela atenção e pelos bons augúrios. Espero que você seja cativado pelo Mann assim como eu fui. Abraços!

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