Submissão, de Michel Houellebecq




Submissão, de Michel Houellebecq, foi publicado no Brasil em 2015. Ao longo desses quase cinco anos, foram muitas e confiáveis as referências positivas à obra, numa quantidade tal que qualquer pessoa minimamente suscetível já teria de pronto lido o livro, sem maiores rodeios; um amigo em especial, com o qual estou sempre debatendo os assuntos literários, fazia referências constantes e entusiásticas ao autor, um de seus favoritos; some-se ao burburinho os temas da islamização da Europa e do multiculturalismo, que sempre estiverem em meu radar, e de fato não havia motivos para não ler Submissão. Mas eu não o li. Não o li até setembro deste ano, quando, de supetão, decidi fazê-lo. Acontece comigo de ficar como um burro empacado na leitura de determinados livros; não há explicação plausível, não se trata de uma ojeriza genérica a títulos muito falados e com “hype”, mas de simples empacamento de burro, sem argumentos a tentar convencer de sua posição como só um empacamento de burro pode ser sem.

E o burburinho estava certo. Submissão é uma grande obra. Uma obra magnânima, quase uma agressão de Houllebecq ao leitor cujo tapa na cara é o gênio literário transbordante. E é grande por motivos diversos do que imaginava, muito distanciados de uma óbvia condenação ao “status quo” europeu que julgava ser seu objeto. Muitos, parece-me, leram Submissão como um manifesto desse tipo. Lamento por esses leitores, pois falta-lhes a sensibilidade literária que é a chave de acesso à grande literatura. A grandeza de Submissão está na perplexidade que provoca no leitor, no incômodo que causa transcendendo tudo o que se fala vulgarmente sobre islamização e crise da civilização ocidental.

François é um professor universitário francês de meia-idade. Seu principal objeto de estudos é o escritor francês Joris-Karl Huysmans, cuja obra idiossincrática é associada ao famoso grupo de literatos católicos franceses da primeira metade do século XX. No âmbito profissional, François pode ser considerado bem-sucedido: professor da  Universidade Paris III, é reconhecido entre os pares pela importância de seus estudos sobre Huysmans. Não se trata, é certo, do melhor emprego do mundo, nem do mais bem remunerado, tampouco o reconhecimento da importância de um estudo sobre Huysmans é conquista que angarie a consideração das pessoas para além do diminuto grupo dos especialistas em literatura. No âmbito pessoal, François vive afastado dos pais, seja por não suportar viver junto da mãe, seja por não se encaixar na nova vida que o pai adquiriu ao se divorciar; solteiro, não se pode dizer que viva uma completa pasmaceira amorosa e erótica: vez ou outra, com frequência razoável, envolve-se com alguma mulher de relativo interessante, mas nada que progrida para um estágio mais sério, de jeito nenhum para um casamento. Por todos os ângulos pelos quais se olhe para François, enfim, a média impera: homem de meia-idade, acadêmico com certo reconhecimento, emprego relativamente prestigioso, vida amorosa mais ou menos agitada. O único trunfo que François poderia sacar da algibeira seria o da erudição literária, mas não sem antes ignorar que, para quase todos mundo, esse trunfo e nada são quase a mesma coisa.

François vive num tempo facilmente identificável com o agora; também poderia ser identificado com 2015, ano da publicação da obra no Brasil, ou com os dois ou três anos anteriores, quando Submissão seguiu seu percurso internacional dos originais de Houllebecq até o comentário público. Este é um tempo de pensamentos, sentimentos, impressões, palavras e atitudes medianas, comedidas, segundo a medida da vida do personagem principal. A Europa permanece um continente rico, de passado glorioso, ao qual intelectuais ainda recorrem de modo a fazer crer que continuam vivendo no apogeu de antanho. A alta cultura é vocacionada à eternidade; portanto, serve muito bem como fogo de artifício para distrair o sujeito que a produziu quando se recusa a perceber que dificilmente conseguiria reproduzi-la no presente. No dia a dia, porém, os europeus já não são iguais aos de outrora: por diversos motivos, escasseia sua perpetuação biológica; a fé cristã, antes objeto a partir de cujo debate se situava no mundo, já não lhe diz muita coisa, mesmo nos sentidos estritamente histórico, cultural e filosófico; estrangeiros muito certos de sua visão de mundo compartilham o mesmo espaço urbano, vez ou outra de modo conflituoso, mas em geral de modo ordeiro; esses estrangeiros, por diversos motivos, se perpetuam biologicamente; na política, direita e esquerda debatem sem chegar a uma conclusão, muito em função de não saberem exatamente a quais questões estão procurando uma resposta. Tudo parece igual, porém quase tudo está diferente. O passado é apenas perfume, que evapora conforme o dia vai passando. São 18h00, o dia está acabando, o perfume não se faz sentir, e o que chega ao olfato é a transpiração do homem exausto e os odores do entorno.

Uma novo eleição presidencial se aproxima. François acompanha com interesse o noticiário. Trata-se de interesse, que é diferente de alienação, mas não de um interesse que possa ser acometido de ansiedade ou sofreguidão, antes de um interesse confiante em que, ao fim e ao cabo, tudo continuará como antes. Esquerda e direita entabulam o debate de sempre. A presença da extrema-direita e seu potencial de vitória incomodam. Um fato novo é a disputa do cargo por um candidato muçulmano, homem moderado e intelectualizado, cioso de sua fé mas na mesma medida integrado à sociedade francesa, culta e democrática. Esquerda e direita tradicionais não podem permitir que a extrema-direita chegue ao Eliseu; sozinhas, no entanto, não conseguem fazê-lo; hesitam um pouco, mas terminam por apoiar, mesmo que tacitamente, o candidato muçulmano: afinal, este é um candidato moderado e sua fé não pode ser vista como óbice à participação no jogo democrático.

Ben Abbes, o candidato muçulmano, vence a disputa. François não teme propriamente que a França vire do dia para a noite uma espécie de Arábia Saudita europeia - há muitas garantias de que isso não acontecerá. Entretanto, é certo que o partido vencedor tem uma agenda, e que, uma vez vencedor, ostenta legitimidade para implantá-la. Ben Abbes preocupa-se sobretudo com a educação e os costumes; quanto à economia e às instituições democráticas, pontos sensíveis para a maioria, o passado pode prosseguir sem maiores restrições. Como François é professor universitário, é possível que seja impactado pelo mandatário que ascendeu ao poder.

François acaba sendo aposentado da universidade. Não é correto dizer que foi enxotado da instituição: ofereceram-lhe uma aposentadoria vultosa, a qual lhe permitirá viver melhor do que imaginara os muitos últimos dias de sua vida. Aposentado precocemente, o ócio digno se confunde com a mediania de sua vida, que persiste inobstante o derredor. É difícil, no entanto, ignorar as mudanças pelas quais passa a sociedade e a universidade, em particular. As roupas das francesas silenciosamente se tornam mais pudicas e austeras; os anúncios publicitários já não apresentam a desinibição de antigamente; professores que decidiram aderir ao novo sistema, polindo seus tópicos de discussão e se inserindo em estruturas familiares regulares veem suas trajetórias acadêmicas decolarem, além de poderem flertar com a poligamia oficializada; tipos esquisitões de outrora agora são acompanhados por várias esposas, jovens, belas e arranjadas. E qual o problema de ser arranjada? Pensando bem, há sabedoria nesse formato. O capital árabe acorre generosamente à França. Economia e democracia, pelas quais se hesitava um pouco antes do apoio a Ben Abbes, são caravelas velejando de vento em popa. É sem dúvida desconcertante que as mulheres vivam agora com maiores restrições. Todavia, vistas as coisas de uma perspectiva mais ampla e livre, talvez esses sejam ajustes necessários. O voto popular, quem diria, finalmente se mostrou veículo capaz de expressar os anseios mais profundos - e ocultos - da sociedade.

A mediania da vida de François, conquanto satisfatória, começa a incomodá-lo. Sua inexistente vida familiar morre de fato. Um “affair” antigo, por quem no fundo nutria esperanças mais sérias, saiu da França no calor da eleição de Abbes, migrando e se estabelecendo em Israel, onde os judeus indiscutivelmente poderiam viver com maior tranquilidade - nem tudo é perfeito. As performances sexuais geram tédio e apatia. Por outro lado, a vida acadêmica lá fora parece florescer. Não são só os altos salários que os novos professores recebem do atual governo, cuja preocupação com a educação se sobreleva a todas as outras, que enchem os olhos do François aposentado. Também parece haver ali vigor, novidade e força que não existiam. A rigidez dos preceitos islâmicos plantada no solo da cultura europeia parece ter produzido uma flor fresca e bela. Colher essa flor e desfrutar do seu perfume é um ato de sensatez, e não sucumbência à tentação.

A França de Submissão começa e termina o livro do mesmo jeito. Em essência. A flor não foi plantada com a eleição de Abbes, mas antes dela. A eleição de Abbes só foi possível porque a flor já fora plantada: o desabrochar em seu governo foi desdobramento natural.

Houllebecq é um ouvinte atento da balbúrdia e do silêncio contemporâneos. Da balbúrdia do debate em torno da crise da civilização ocidental, da islamização da Europa, da necessidade de tolerância, da globalização, do multiculturalismo, das dívidas históricas e dos valores da democracia e economia liberais. Do silêncio em torno de questões vitais - ou mais exatamente, existenciais - que incomodam a sociedade europeia sem dizer seu nome, desprovidas que estão de um léxico esquecido que permita sua enunciação. Como ouvinte imerso no sol quente da tarde da Europa, Houllebecq, posto sua genialidade, encontra-se igualmente desprovido daquele léxico; por esse motivo, com humildade resignado às forças do seu ofício, limita-se a expor com translucidez o estado de coisas atual. Sendo assim, Submissão não traz resposta à crise europeia, não faz apologia do ocidente ou demoniza o islã; muito pelo contrário, às vezes o leitor é tentado a pensar que, contrariamente a suas preconcepções, o casamento do islã com o ocidente, em regime de comunhão universal de bens, pode se provar a única parceria capaz de superar o torpor atual. Torpor e perplexidade subjazem Submissão. Torpor e perplexidade: é possível que essas sejam as primeiras palavras resgatadas do léxico esquecido pela Europa. No bafo quente da balbúrdia e silêncio europeus, é uma conquista de gênio de Houllebecq não ter se deixado envolver e, desse modo, divisado as pistas que podem conduzir a uma solução; em que sentido, nem Houllebecq consegue dizer.

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