O Selvagem da Ópera, de Rubem Fonseca




Desde o final de 2017, quando compromissos profissionais e estudos acadêmicos passaram a tomar mais do meu tempo, vinha enfrentando dificuldades para ler tanto quanto lia antigamente. No ano passado, por exemplo, li apenas vinte e seis livros, dezesseis a menos em comparação a 2017, ano em que li quarenta e dois títulos. Apesar da consciência de que quantidade não é tudo, sentia-me frustrado porque meus projetos de formação humanística e conhecimento dos clássicos pareciam cada vez mais distantes de um progresso substancial; afinal, o cânone, visto pela escala de uma vida humana, é quase infinito, e uma hora ou outra, por mais que a qualidade da leitura seja boa, o peso da quantidade se impõe sobre projetos como os meus.

Observando meu dia a dia e procurando encontrar nele brechas que me permitissem ser um leitor mais eficaz, percebi que, muito embora meus compromissos de natureza diversa tivessem de fato aumentado, ainda sim me sobrava bastante tempo livre, horas valiosas através da quais poderia avançar minhas pretensões literárias. Percebi também que o que atrapalhava esse propósito, mais do que distrações mundanas com as redes sociais, era a rigidez com que me aferrava a modelos preconcebidos (e pouco refletidos) de leitura: relutava em ler uma excessiva quantidade de livros ao mesmo tempo, ou a abandonar aqueles que não me conquistavam de imediato; não me permitia fazer anotações nos livros, ao mesmo tempo que considerava excessivamente difícil fazê-las em apartado; evitava os e-books, como que numa desvairada homenagem aos livros físicos e consagração do meu amor por eles, apesar de já ter tido ótimas experiências com leituras no Kindle; obrigava-me a ler apenas de forma prolongada, deixando assim ociosos breves momentos livres, os quais, somados, poderiam representar vários títulos concluídos; e, por fim, fazia excessivos rodeios para ler determinadas obras, principalmente poesia, exigindo de mim mesmo - e nunca honrando essa expectativa - um preparo que dificilmente alcançaria no médio prazo.

Já ouvi dizer por aí que, a fim de alterar uma estrutura de hábitos deletéria, o ideal nem sempre é enfrentá-la de frente; muitas vezes, introduzir nela um novo hábito desestabilizador produz resultados bem melhores. Foi o que aconteceu comigo e com minha estrutura de leituras fracassada. No começo do ano, tive contato pela primeira vez com os audiolivros disponíveis para Android na plataforma Google Play. Não são muitos, a indexação é péssima, tornando difícil a pesquisa por gêneros literários e editoras, no entanto, os títulos disponíveis tendem a ter boas narrações e preços justos, estes condizentes com o esforço de produção (criação, edição e narração do texto). Meu primeiro audiolivro foi O Homem da Areia, de Hoffmann, extraído da coleção Novelas Imortais, da editora Rocco. Conservador no que se refere aos meus péssimos hábitos, só comprei o título porque estava barato e atendia a um requisito imediatista que me é típico quando se trata de enfim testar algo novo: eram aproximadamente duas horas de narração, o suficiente para que pudesse concluir a audição durante uma única viagem das que faço frequentemente entre Franca e Araraquara, mas não tão pouco que tornasse cara a aquisição. Gostei muito da experiência. Todavia, conservador de maus hábitos, resisti a dar o braço a torcer investindo em mais títulos; por esse motivo, acabei ficando por bastante tempo apenas com O Homem da Areia para ouvir, e como a audição fosse agradável, eu a repeti por quatro vezes, o que por si só foi uma experiência desestabilizadora daqueles velhos hábitos, pois, sempre ansioso pela quantidade de livros por ler, raramente me permitia o aprofundamento que só as releituras proporcionam.

Foi só mais tarde, em outubro, que de uma vez por todas superei minhas resistências iniciais totalmente injustificadas e voltei a investir - e ouvir - em outros audiolivros. E, como dito, esse pequeno passo inovador foi o suficiente para que boa parte dos velhos e perniciosos hábitos de leitura viessem abaixo, dinamizando assim sobremaneira as leituras. O que mais impressiona é que não só aumentei a quantidade por conta das audições, como também passei a ler muito mais livros físicos, num ciclo virtuoso do qual espero continuar me beneficiando. Até agora - e desde outubro - foram cinco audiolivros concluídos, e um sexto em vias de conclusão. No mesmo período, também consegui ler oito livros físicos, o que, no ano, me aproxima de quarenta livros lidos, quase o meu recorde de 2017. Entre essas quatro dezenas se encontra uma graphic novel, gênero ao qual sempre resisti sem motivações claras. Os audiolivros se adequam perfeitamente à minha rotina, potencializando significativamente minha capacidade de leitura: viajo bastante, estou sempre no trânsito e frequento bastante academia de ginástica: todos seriam períodos expressivos de tempo irremediavelmente perdidos quanto à leitura, não fosse a existência dos audiolivros.

Como já referi, o catálogo de audiolivros ainda é relativamente pequeno. Porém, como minha demanda por livros nesse formato precisa ser constantemente atendida - agora que me acostumei com ele e tomei gosto pela coisa -, sou forçado a escolher entre esses poucos títulos. Essa escassez, que a princípio pareceu ruim e desabonadora do formato, acabou por se provar um trunfo, na medida em que me obrigou a ultrapassar meu horizonte literário e finalmente travar contato com títulos e autores dos quais, de outro modo, dificilmente me aproximaria. Foi o que aconteceu com O Selvagem da Ópera, de Rubem Fonseca, autor que nunca lera, apesar das várias referências positivas, e em relação ao qual jamais imaginara que pudesse ter escrito um livro com o tema e formato d’O Selvagem.

O Selvagem da Ópera é uma biografia ficcional do grande maestro e compositor brasileiro do século XIX, Carlos Gomes. Muitos de nós já ouvimos falar em algum momento, provavelmente de maneira superficial e ligeira, desse grande personagem da cultura brasileira, que, no passado, conquistou fama internacional; alguns poucos devem saber que a introdução do programa de rádio A Voz do Brasil nada mais é do que um trecho de uma de suas obras mais famosas, a ópera O Guarani; quase ninguém, contudo, sabe mais do que isso, ou seja, qual a extensão da fama e do gênio desse homem.

No livro, Rubem Fonseca aborda o arco total da vida do músico de uma forma inusitada: redige não um romance biográfico, mas sim o roteiro do que seria um cinebiografia do artista. Desse modo, consegue relatar-nos os acontecimentos de sua vida pela descrição das cenas a serem filmadas e dos diálogos a serem entabulados entre os personagens; dá-nos indicações precisas dos cenários, roupas e clima de cada cena pelas rubricas; e aprofunda a psicologia do momento e justifica os recortes e ângulos escolhidos pelo que seriam notas de rodapé do roteirista às próprias rubricas. Explicado o artifício dessa maneira, pode parecer que o livro todo resultou num tédio completo, numa estrutura artificial capaz de truncar mesmo a leitura do leitor mais bem-disposto; entretanto, não é assim: a prosa de Rubem Fonseca é objetiva, clara e bem ajambrada, e o formato inovador acaba por conferir um tom agradável e moderno a personagens e fatos que, em virtude de seu peso histórico intrínseco, poderiam tornar toda a narrativa indesejavelmente solene.

Carlos Gomes nasceu em Campinas na primeira metade do século do século XIX. Desde jovem afeiçoado à música, tão logo se fez adulto rumou à capital do Império em busca de oportunidades que só lá poderiam ser encontradas. Naquela época, conquistar sucesso artístico quase sempre passava por estudar na Europa e angariar o beneplácito da Coroa. Vindo de família de condições modestas, Carlos Gomes não escapou a tais exigências: de forma gradual, aproximou-se da aristocracia até chegar a Dom Pedro II, conseguindo do Imperador os recursos necessários aos seus estudos em Milão, à época uma cidade inescapável a quem tivesse pretensões musicais. Na Itália, pôde aperfeiçoar seus conhecimentos musicais, criar óperas e canções e fazer-se estimado pelas exigentes plateias da Europa. Casou-se com uma italiana, teve filhos, muitos dos quais - para seu descontentamento - morreram na primeira infância, e associou-se a grande nomes da música que circulavam pela Itália naquele período. Sua trajetória musical e pessoal no estrangeiro não foi tranquila, porém também não foi um completo fracasso ou tormento. Obteve muitas realizações artísticas, apresentou-se em grandes palcos, foi publicado por importantes casas editoriais (o que era relevante naquele momento em que as partituras constituíam o principal meio de difusão da música), ganhou dinheiro; por outro lado, atrapalhavam a criação de uma obra mais original a dependência dos aplausos do público, certa insegurança por ser estrangeiro e trazer nas veias sangue “de selvagem” (como diziam a respeito dos índios e africanos), o vício do álcool, a prodigalidade e as variações no apoio financeiro brasileiro em momentos em que os recursos próprios escasseavam. O casamento com a italiana e música Adelina, a princípio feliz, muito em virtude das traições perpetradas por Carlos, acabou tendo a separação do casal como desfecho, esta de forma tumultuada; a partir de então, Carlos não mais voltaria a se unir a mulher de forma estável, num casamento. Apesar de algumas oscilações, em geral pode-se dizer que, em vida, Carlos obteve significativos reconhecimento e aplausos no Brasil. Viajou muito, visitou os Estados Unidos, Cuba, Rússia, entre outros países, mas acabou por vir morrer no Brasil, mais especificamente em Belém do Pará, de forma melancólica e solitária, pretendendo ali conduzir um conservatório em vias de inauguração.

Os detalhes sobre a criação das principais obras de Carlos Gomes; os relatos da cena musical europeia; o pano de fundo histórico brasileiro, tendo por pontos altos a erudição do Imperador Dom Pedro II, a abolição da escravidão e a proclamação da República, são todos acréscimos naturais à vida do artista que tornam o livro muito mais valioso, adequadamente didático ao pôr o leigo a par de todo esse contexto. Vale destacar as menções ao abolicionista André Rebouças, grande amigo e apoiador de Carlos, acerca do qual Rubem Fonseca se demora mais que em outros personagens.

Conquanto seja incontestável que a cultura brasileira apresenta dificuldades e desafios nada desprezíveis em sua construção e inserção no cenário mundial, é igualmente incontestável que essa construção e inserção não se encontram num ponto zero, tendo muito já sido feito. Cabe a nós descobrir muito do que já foi feito e ignoramos; nesse sentido, a vida e a obra de Carlos Gomes são essenciais: é difícil não se surpreender com as conquistas artísticas de um brasileiro - relativamente - comum do século XIX num ambiente tão exigente quanto o da ópera italiana.

O Selvagem da Ópera é narrado pelo famoso ator Paulo Betti. Extremamente correta e agradável, não há reparos a fazer a sua performance. Assinalo, entretanto, o uso que se faz do famoso trecho de O Guarani nas transições de capítulos: é compreensível que a celebridade do trecho leve a um maior número de repetições; não se justifica, porém, que trechos das demais obras de Carlos não tenham sido utilizados - perdeu-se certamente uma ótima oportunidade de divulgar essa música em meio a um público ignorante no qual me incluo.

Grata surpresa, O Selvagem da Ópera me fez olhar com outros olhos para Rubem Fonseca, escritor de vasta bibliografia acerca do qual só possuía vagas e repelentes ideias sobre ser esta ligada ao marginal, ao visceral, ao grotesco até, e nada mais, como que num exercício vazio e masoquista do feio. Provavelmente, dada a já mencionada pequenez do catálogo, sua próxima obra que devo conhecer é O Doente Moliére, também disponível em audiolivro na plataforma Google Play. E não há nada mais animador do que descobrir um autor de que gostamos cuja obra é vasta e nada explorada.

A oitiva de audiobooks serviu para revolucionar meus hábitos de leitura; trouxe-me ao gosto Rubem Fonseca, que até então estava longe das minhas perspectivas de leitura; falta, no entanto, revolucionar um último ponto da antiga estrutura que teima em permanecer de pé: a excessiva reverência pela leitura de poesia e sua consequente não realização. Espero poder voltar a falar dessa superação em breve.

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Comentários

Unknown disse…
Parabéns pelas leituras realizadas este ano você escreve muito bem !!!
Obrigado! De fato não tenho o que reclamar das leituras de 2019. Que as de 2020 sejam ainda melhores.

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