O Reino, de Emmanuel Carrère



Tão logo alguém começa a estudar literatura mais a fundo, envolver-se mais de perto com as ciências humanas e os próprios fatos históricos, percebe com surpresa que a religião - e também os mitos - é uma constante das grandes produções da cultura, seja como objeto imediato, seja como interlocutora com a qual se dialoga, inclusive para discordar com veemência. A surpresa contemporânea é facilmente explicável pela laicidade do corpo social, que se manifesta não só como separação entre Religião e Estado, mas também como desencanto com a transcendência e ausência de cultura religiosa. Todavia, essa laicidade não explica como grandes obras de arte e do pensamento continuam a ser produzidas: afinal, todas elas não nascem de alguma forma do espanto com o mundo, da formulação de perguntas essenciais que guardam relação próxima com o transcendente? Se o desencanto é total, do que se têm nutrido aqueles que estão por trás dessas grandes obras? Por acaso houve alguma revolução no modo de produzi-las que fez da antiga aproximação matéria da museologia?

Emmanuel Carrère é um homem com qualidades; aos olhos dos seus concidadãos, na certa merece ser invejado; roteirista e escritor francês de sucesso, é rico, mundialmente reconhecido, bem casado, bem inserido na sociedade europeia culta, além de, como ele próprio assinala, jurado convidado do festival de cinema de Cannes, posição que considera o suprassumo do charme e sucesso. Desencanado e liberado, Carrère não tem pudores de falar abertamente sobre sexualidade e desejos eróticos, tópicos que mesmo aqueles concidadãos às vezes prefeririam evitar. Há, porém, um traço da biografia do escritor - ou melhor, não somente um traço, mas um bocado de capítulos -, que ele preferiu ocultar por muito tempo da vista dos amigos e do público. Tinha vergonha dele. Vergonha mesmo, como um adolescente tem vergonha de ser levado de carro pelos pais até a porta da festa dos colegas e por isso parecer menos descolado e um pouco infantil. O Reino é o exercício de superação pública dessa vergonha.

Praticante de yoga e meditação e ouvinte atento dos preceitos budistas, Carrère certo dia despertou para o absurdo e encanto do cristianismo. O absurdo de judeus, gregos e romanos antigos que, de repente, passaram a acreditar e professar publicamente, a todo custo, na “história extravagante” de que um homem ressuscitara dos mortos após ter sido morto numa cruz, cruz na qual fora pregado mesmo sendo o próprio Deus. O encanto da inocência e força da profissão de uma fé tão contrária à mera racionalidade. Esse despertar, no entanto, consistiu na verdade em um “novo despertar”, isto porque Carrère, anos antes, vivera aproximadamente dois anos como um católico fervoroso, de comunhão diária, confissão frequente e estudo em profundidade dos clássicos da espiritualidade, em especial do Evangelho de São João. A chama da fé virou cinzas ao final desse período, e desde então Carrère guardava suas antigas crenças junto dos cadernos em que fizera anotações diárias sobre o Evangelho de São João, no fundo de um armário de casa, entre outros objetos de pouco uso dos quais não se desfaz por não se sabe qual razão.

Desperto para absurdo e encanto, o escritor francês decidiu revisitar a antiga crença, tentando descobrir como pudera acreditar piamente naquela história extravagante de ressurreição. Não poderia ser diferente para um homem de letras: um dos primeiros passos que deu foi encarar de novo as anotações do passado deixadas no fundo do armário, anotações que pareciam escritas por uma outra pessoa.
A volta ao passado então se estendeu da visita a antigos manuscritos para abranger uma leitura original e atenta dos Epístolas de São Paulo, dos Atos dos Apóstolos e do Evangelho de Lucas, buscando encontrar nesses textos pistas que seus autores deixaram revelando a manifestação concreta em suas vidas do absurdo e encanto que a notícia da ressurreição produzira em suas vidas. O Reino é, portanto, uma leitura experimental do Novo Testamento, um ensaio da vida dos primeiros cristão no século I.

Essa leitura toma os Atos dos Apóstolos como linha cronológica por meio da qual narra a vida de São Paulo, seu primeiro personagem e bastião daqueles primeiros tempos do cristianismo. A conversão de Paulo, suas exatas origens e formação, a pretérita perseguição aos cristãos, a proximidade com as igrejas da Ásia Menor e da Grécia são exploradas sob a perspectiva do conflito e descompasso de sua pregação com a dos Apóstolos e cristãos de Jerusalém: a questão da observância das leis mosaicas tensionava a convivência e a fé dos primeiros seguidores de Cristo. Carrère pinta muito bem o gênio forte de Paulo descrevendo os conflitos interiores e as adaptações sociais aos quais se via obrigado em virtude da defesa que fazia de uma prática religiosa desgarrada das antigas observâncias judaicas, ao mesmo tempo que não desejava romper com os cristãos de Jerusalém.

A exploração da vida de Paulo leva naturalmente à exploração da vida de Lucas, e não poderia ser diferente: Lucas redigiu os Atos dos Apóstolos e um evangelho, além de ter redigido a Epístola de São Tiago, segundo hipótese avançada por Carrére. Um olhar mais atento a O Reino permite entrever que seu verdadeiro protagonista não é Paulo, mas Lucas. O evangelista é descrito de forma hilária como um homem tipicamente moderado - não sem demonstrações bíblicas muito críveis -, daquele tipo que seria vomitado da boca de Deus no Apocalipse por ser morno, o qual buscava conciliar o furor e as posições de Paulo com as posições e a legitimidade histórica dos cristãos judaizantes de Jerusalém. Descrevendo a trajetória de Lucas ao lado de Paulo, Carrère tenta espreitar nas entrelinhas os momentos importantes em que ele teve contato com o outro lado e as fontes do seu evangelho, assim como teorizar sobre tudo o que teria feito após a morte de Paulo em Roma.

As narrativas e hipóteses levantadas por Carrère são extraídas de sua leitura obstinada e cruzada dos textos do Novo Testamento, digna de aplauso pela argúcia com que enxerga pequenas pistas que, vistas sob o ângulo correto, muito têm a revelar. Além da narração das vidas de Paulo e Lucas, O Reino contém análises e especulações interessantíssimas dos outros evangelhos, da fonte comum a Marcos e Lucas, das fontes que são próprias a cada evangelista, dos textos atribuídos a João e aos outros apóstolos. As análises são sempre um cruzamento da tradição dos estudos bíblicos com a visão original e particular de Carrère. Afora os seis anos que dedicou à escrita de O Reino e os dois que passou anotando o Evangelho de São João, Carrère se dedicou por dois anos à tradução do Evangelho de São Marcos, num projeto que reunia escritores e especialistas franceses célebres num esforço de tradução conjunta e contemporânea da Bíblia.

Na aproximação dos primeiros tempos do cristianismo que faz o autor, vale notar o paralelo que traça entre nosso ambiente religioso e o dos primeiros cristãos. Carrère observa muito argutamente que no Império Romano do século I havia uma disposição favorável às crenças do oriente, inclusive do judaísmo por parte dos gentios, a qual se assemelhava à recepção das religiões orientais pelo ocidente atual na medida em que se trata de uma observância de preceitos e práticas determinadas, e não de um sistema religioso em todos os seus aspectos. Também são dignos de menção os trechos relativos ao historiador Flávio Josefo, à laicidade do Império Romano e à diáspora dos judeus e destruição do Templo no primeiro século.

Sendo O Reino um grande ensaio, nele não há a descrição rígida dos primeiros tempos do cristianismo e nada mais. Carrère compartilha no texto a sua grande erudição e trajetória pessoal, tornando assim a fruição do conjunto da obra bem mais deleitosa. E é no compartilhamento de sua trajetória pessoal, ponto de partida para todo o trabalho afinal, que está a linha subjacente e sutil, mais sentida que vista, a perpassar todo o esforço especulativo. Carrère é um grande artista; não passa incólume ao absurdo e encanto do cristianismo, tal como não passa incólume, em primeiro lugar, às grandes questões existenciais; essas questões lhe afetam diretamente enquanto ser humano; falar sobre o cristianismo igualmente lhe afeta, pois rever o passado quando se era outro é uma experiência desconcertante. Paira como um suspense em O Reino o impacto final dessa jornada sobre a espiritualidade do autor: voltará a ser católico? Sairá reforçado de sua descrença atual? O desfecho é comovente e profundo, revelador não de uma resposta simples a essas perguntas, mas antes da perplexidade e mistério de ser humano.


A nudez pública de Carrère aponta para que, apesar do desencanto com a transcendência contemporâneo, as grandes obras da cultura, uma vez que são grandes, ainda nascem do espanto com o mundo e da busca por respostas para as grandes questões da existência, mesmo quando espanto e busca não parecem evidentes. Trata-se, é certo, de um diálogo que geralmente prescinde do conhecimento das tradições religiosas mais conhecidas, não deixando por isso, no entanto, de ser um diálogo com o transcendente - ou com a dureza da imanência, que é dura muito por conta da ausência do que transcende. Por outro lado, a nudez de Carrére da mesma maneira aponta para que, apesar da persistência do diálogo, seu estabelecimento mediado pelo patrimônio de pensamento e experiência das religiões tradicionais permanece um expediente capaz de enriquecer sobremaneira as obras de cultura daí resultantes, sem que haja nisso qualquer necessidade de conversão do interlocutor ou pregação apologética. Para o leitor comum, O Reino é também um convite à exploração do cânone bíblico do ponto de vista literário e a sua leitura comparada a das grandes obras literárias e artísticas que foram criadas em interação com ele.

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