Autorretrato e Outras Crônicas, de Carlos Drummond de Andrade



Há vários anos, decidi formar uma biblioteca toda dedicada a Drummond; não só à reunião de sua obra canônica completa, isto é, dos títulos publicados em vida, mas também à de edições comemorativas, especiais, com recortes e antologias interessantes, textos críticos diferentes, raridades, livros de cartas, biografias, livros sobre o autor e sua obra.

Em verdade, não li tanto assim de Drummond; a escolha pela coleção de sua obra foi feita porque sempre cultivei a intenção mais geral de possuir uma biblioteca completa de literatura e estudos brasileiros, e Drummond, a par de ser um autor do meu interesse, estava disponível no mercado à época com uma gama variada de edições caprichadas, especiais, as quais, logo à frente, passariam à categoria das raridades - nesse sentido, penso nas da Cosac Naify e do Instituto Moreira Salles.

Desde então, portanto, tenho comprado quase tudo o que surge no mercado relacionado a Drummond. Restrinjo meus esforços, porém, às edições mais recentes e de fácil acesso: ainda não me deixei levar ao caminho sem volta das primeiras edições, edições antigas e traduções para idiomas inusitados. Pode ser que um dia me perca por essa brenhas.

As compras, infelizmente, não têm sido acompanhadas pela efetiva leitura com o mesmo grau de intensidade, o que se explica em parte por minha falta de jeito com a poesia e pela cerimônia que ainda me exijo para sua leitura. Falta-me o desprendimento e a irreverência de simplesmente ler e aproveitar os poemas, na medida das minhas faculdades, sem maiores rodeios.

Nessa linha de ação, foi uma surpresa entusiasmante a compra e leitura imediata de Autorretrato e Outras Crônicas, coletânea lançada em 2018 pela Editora Record, que começou por chamar minha atenção justamente por não ter sido publicada pela Companhia das Letras, casa atual do autor. Já tivera contato com o Drummond prosador em outras oportunidades, até mais vezes que com a poesia, mas em nenhuma delas me sentira tão cativado e rendido por sua simplicidade e correção quanto com esse livro. Como li certa vez, os poetas brasileiros têm o dom de serem excelentes prosadores, ao passo que os nossos grandes prosadores tendem a escrever poesia de forma sofrível.

Autorretrato foi publicado pela Record por concessão especial da Companhia das Letras porque foi o primeiro livro publicado pelo parque gráfico do grupo editorial, há vários anos, sendo agora escolhido por esse motivo para celebrar os setenta e cinco anos da casa.

Trata-se de crônicas reunidas por Fernando Py após a morte de Drummond em 1987, até aquele momento inéditas em livro, recolhidas de sua produção para a imprensa de 1940 a 1970 e julgadas relevantes pelo organizador em função de seu valor literário e perenidade dos temas.

A primeira delas, que dá título à reunião, é talvez também o seu ponto alto. Nela, o poeta mineiro se olha no espelho e se derrama na descrição irônica do que vê, fazendo referência às opiniões alheias sobre sua pessoa e avaliando-as em seguida. Afirma, por exemplo, que "é um indivíduo oculto, como certos sujeitos da oração", e que "[t]em explorado largamente o fato de haver nascido em Itabira, cidade mineira do ferro, como se isto constituísse uma singularidade".

Em Opiniões de Robinson, realiza uma entrevista fictícia com o personagem ilhado de Defoe, explorando seu sucesso inesperado com as crianças, assim como as fronteiras, reais ou imaginárias, entre literatura infantil e literatura adulta, tudo com o maior humor e ironia.

Em Museu: Cautela, Drummond demonstra sua habilidade de transformar o fato cotidiano, destinado ao esquecimento, em motivo de reflexão profunda sobre temas mais perenes, sempre sem ser explícito ou professoral, mas valendo-se dos instrumentos que a linguagem coloca à disposição apenas dos grandes escritores. O Presidente do Tribunal Regional Eleitoral decidira erguer um museu da democracia e assuntos eleitorais, a fim de promover aquela e recordar estes. Diante desse fato, o mineiro afirma em tom ácido que "[a] ideia de representação popular é tão abstrata que convém simbolizá-la em objetos de madeira, metal e papel, empregados nos atos em que se exprime"; "[o] material não é lá muito empolgante, mas a técnica museográfica pode conseguir prodígios". A um só tempo, o autor critica nossas tradições políticas e as ideias de jerico que vez ou outra despontam no cenário cultural. No mesmo sentido é a crônica Poetas em Maio, em que a ideia de jerico da vez é a exposição de poesias num museu; segundo Drummond, não há atrativo ao visitante nesse arranjo, pois "[a] vista prepara-se para um gozo de natureza plástica, ligado à ideia de exposição - e tão mais perturbador pela ideia de poesia! -, e não o encontra na simples folha datilografada". Drummond, critica, mas também aproveita para teorizar sobre estética.

A escolha do organizador por crônicas de temática de interesse perene, mesmo que não muito óbvia a perenidade, mostra-se muito acertada, pois nos surpreende com nomes, fatos e obras que a seu tempo empolgaram Drummond, depois caíram no esquecimento e agora podem ser resgatados por nós através da leitura. São os casos da pulsante vida cultural na casa de Aníbal Machado, em Ipanema; da amável Teresa, esposa do diplomata e poeta canadense Robert Ford, que era querida de muitas figuras importantes do Rio de Janeiro; de Simões dos Reis e seu ousado inventário bibliográfico da poesia brasileira, cuja pretensão era catalogar todos os poetas já publicados em livro ao longo de toda a história nacional; e da revista cultural Anhembi, que por doze anos publicou material da mais alta qualidade.

Também há espaço para os nomes consagrados, e sem menor deleite. As homenagens do itabirano a Lúcio Cardoso, Mário Quintana, Olavo Bilac e Helena Morley são emocionantes e entusiasmantes, dando-nos ímpeto novo para conhecer ou revistar os autores.

Drummond não se esquece dos problemas do seu tempo: chuvas que estrangulam a frágil estrutura urbana carioca; falta de novidades em matéria de homens públicos; superpopulação carcerária em consequência de julgamentos deficientes; o incêndio num prédio sem rotas de fugas planejadas. Nesse último texto, em particular, lê-se uma das passagens mais sensíveis e belas do livro, acerca de uma menina que perdera a mãe na tragédia:

"Vi a menina procurar pela mãe, na multidão em frente ao edifício que pegara fogo, e ninguém dizer-lhe onde estava ela. E a menina sabia que a mãe morrera; sabia de vaga notícia, de obscura ciência, como essas coisas se sabem sem necessidade de testemunho. Ela passeava entre populares e fotógrafos o seu rostinho contraído, sua vozinha de choro, sua escassez de palavras. E quando apareceu um bombeiro para dizer-lhe que a pessoa morta não devia ser sua mãe, todos os sinais tranquilizadores que ele dava eram precisamente sinais confirmativos da perda."

Por fim, vale destacar a admiração de Carlos pela visita do Papa Paulo VI a Nova York. Esse é um flagrante valioso de uma mudança de época segundo a sensibilidade de um espectador privilegiado: para Drummond, o papa esteve sempre associado à prisão vaticana do século XIX, o que lhe conferia certa imutabilidade e rigidez; agora, flanando por aí, transmite um impulso novo, de integração à extensão do mundo e ao homem moderno. Para mim, que já estudei bastante sobre esse período da história da Igreja, é curioso travar contato com esse testemunho tão espontâneo da impressão positiva que as inovações de Paulo VI produziam até mesmo em pessoas não religiosas, como Drummond. Anos depois do experimento, cumpre ponderar o que desse impulso modernizante era legítimo e adequado e se ater a ele.

Autorretrato não é uma coletânea de crônicas banal, de instantâneos bem escritos sobre curiosidades do dia-a-dia e nada mais. Seu escritor é o nosso maior poeta, e os poetas são as janelas do povo para a realidade. Drummond não deixa de ser poeta - e abridor de janelas - ao escrever crônicas, gênero no qual se exercitou diligentemente por cinquenta anos; por esse motivo, mesmo quando fala dos fatos mais banais e aparentemente esquecíveis, fala por meio de fórmulas memoráveis e lapidares, que nos recordam que a essência da vida está escondida por toda parte, à espera de ser trazida à luz. Banhemo-nos, portanto, com a luz de Drummond, luz que brilhou de modo especial em meados do século XX no Rio de Janeiro, e tragamos desse momento luminoso da história brasileira as ideias, sensibilidade, fatos, obras e pessoas que o poeta mineiro generosamente compartilha conosco.

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Comentários

Almasta disse…
Caríssimo Lucas, Venho parabenizá-lo , não somente pela elegância de sua prosa escorreita, mas também pela contribuição inestimável de instilar o interesse aos possíveis futuros leitores ainda não afeitos a obra drummondiana.

A versão textual benemérita do Diário de Leituras inaugura novo espaço muito bem-vindo a todos amantes da literatura e sequiosos por artigos onde a acuidade e o esmero estejam presentes.

Aproveitando o ensejo Lucas, convido-o a mergulhar no universo da Poesia, sem delongas, independente da sua pouca intimidade com esse gênero. Nossa sensibilidade precisa de novos estímulos e desafios tendo como corolário gratificação e deleites insuspeitados. Boa viagem.
Caríssimo Almasta,

Agradeço pela visita e leitura.

Apesar da parca produção, estou bem empolgado com a expectativa de redigir mais textos sobre literatura. Tenho lido bastante - o que é o mais importante no fim das contas - , e por esse motivo, muitas resenhas estão se acumulando, esperando pela redução de minhas impressões em texto.

Um grande abraço!

Lucas

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